Foi em Março de 1957, tinha o
Henrique 16 anos, que o jornal “A Huila” (Lubango Angola) publicou este
espantoso texto, meio conto, meio poema, que revela a alma de um muito jovem
adolescente, solidário, preocupado com os problemas sociais e a dor dos seus
concidadãos. Como o conheci desde sempre, posso garantir: foi com o mesmo
sentimento, o mesmo modo de observar o mundo, que embarcou na última aventura da sua vida: ser o Ombudsman, o defensor do povo, o
ouvidor, o Provedor de Justiça
No Circo há serpentinas e barracas,
gargalhadas e alegria…
E soam tambores em atoarda de aleluia,
chiam vozes de escarninho e mal dizer.
Bate o jaze
desenfreado.
Pernas ao leu, atiradas ao Deus dará.
Vestes garridas sem pregas nem decência,
balões, papeis e foguetes luminosos
numa amalgama confusa de rostos sem expressão.
E de passo a passo há
gritos e risadas,
encontrões e blasfémias repentinas,
no deambular noctívago de quem passa e mira,
alheio à luz feérica que deslumbra.
São sonhos e são caminhos,
e há visões de zombaria, engalanadas de luxo e fausto.
E são veredas e
miragens, tentações gritantes, sem pudor.
Túneis escondidos, onde
mora a miséria envergonhada
de quem quer comer e não tem pão para se enganar…
E ao ar livre,
a contrastar com a negrura de uma vida,
o palhaço tem a face besuntada de cremes e tintas de aguarela.
Os olhos acanhadiços do folgazão
escondem-se por entre o emplastro desigual do colorido.
Desarticulado boneco de palha que a faúlha não consegue
incendiar,
cabriola parvamente num dever que é seu mister;
nariz vermelho,
casaco esfarrapado e calças pardas,
boca escancarada em gorjeio de idiota,
olha a multidão que por ele passa,
indiferente ao seu fadário.
Mas no olhar triste e profundo do palhaço,
anónimo histrião que o mundo vê mas não conhece,
há a doçura sem par de uma alma casta que não sabe o que é
pecado!
Tiritando na frieza da noite, que é o seu dia,
arranca a patetice da chacota,
bandeira da heresia popular,
que já não sabe se ri do palhaço,
se da pantominice enganadora
que se esconde no rictus
amargo da boca pintada.
E buzinam toques em
estampidos de arrepiar.
Cruzam-se morteiros e rebentam bombas e petardos,
num louco carrossel de luxúria onde cavalga a cigarrilha do
prazer.
Mas o saltimbanco canta
e dança nesse jeito de fantoche
que entrechoca os dentes em castanhola alvar,
enquanto no ser do bonifrate há pavor e há tortura porque,
lá dentro, na cama de palha, o filho,
fruto de uma união que não resultou,
estrebucha entre babas de agonia.
Mas o publico,
indiferente espectador, que a desgraça alheia goza,
bate palmas de alegria
e, rindo do momo
enfarruscado,
só quer esquecer a própria dor para a embriagar nas piruetas
do arlequim,
que lhe ri na cara a estupidez lastimosa da sua vida.
E ninguém entende o choro sentido do palhaço,
que a rir, chora, e a chorar ri,
e salta e pula e cai para divertir os outros
em chiste galhofeiro, que crime é troçar da morte e de Deus,
do Mundo e da criança que agoniza.
E o jaze arranca das entranhas o carnaval maluco e desumano,
que me faz lembrar que todo o mundo é palhaço na dolência do
destino,
e que também eu fui palhaço e bobo truão e burlão no
carnaval da minha vida.!
E as serpentinas e os «confetis» já não são papeis bizarros
de brincadeiras,
mas correntes de ferro que se impõem,
espezinham, dominam, exigem
e não o deixam fugir para salvar o filho moribundo;
e os nervos doem
causam-lhe agonias e suores,
enquanto o corpo arrasta a nódoa que o chumba no anfiteatro
de terra,
onde caiem as primeiras moedas de um público
que sai divertido e já não olha para o palhaço que esqueceu.
Amanhece!
No circo jaz da noite de farra o esterco colorido do
carnaval….
E sobre o leito mortuário do miúdo,
há alguém que ainda ri,
porque já não é palhaço mas louco que não tem razão.
E a gargalhar,
ele pousa sobre a campa do seu filho,
em vez de flores brancas de saudade – as moedas que o
público lhe atirou!!
Publicado no Jornal «A Huila» em 9 Março de 1957