quinta-feira, 20 de maio de 2010

Um Relógio Fechado no meu Coração

Deixamos hoje duas histórias escritas pelo João, 2º filho, na data do seu 42º aniversário. A primeira, por altura do seu 18º Aniversário, relembra-nos o LEGADO. A segunda, por altura do falecimento do nosso Pai, remete-nos para a SAUDADE.
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Querido PAI,
Pelo LEGADO, PAI, cheio de AUTENTICIDADE, recordo-te o dia do meu 18º aniversário. Era bem de manhã, eu ainda dormia. Entraste no meu quarto, acordaste-me e disseste-me, apenas e só: “Parabéns filho, por esta data tão importante. Infelizmente o PAI não vai poder estar contigo, porque vou viajar em trabalho (do que me recordo creio que iria para São Tomé e Príncipe). Mas o mais importante não é eu não poder estar, o mais importante é tu saberes que aquilo que mais desejo para ti é a tua felicidade. Não existe nada mais importante no Mundo do que ela, e por ela devemos lutar.” Deu-me um beijo e despediu-se. Não poderia ter desejado mais nem melhor. Obrigado, PAI.
Pela SAUDADE, PAI, imensa, deixo-te um texto que conta simplesmente uma história de amor e de amizade, baseada numa carta escrita em 14 de Abril de 2010, para a Sara, filha de uns amigos. Foi redigida, na altura, num pequeno livro de recordações, que também hoje lhe é oferecido como lembrança. A história conta-se assim:

"Um relógio fechado no meu coração"

- Sentimentos -

Sara, minha querida,
O meu PAI morreu. Quando soube o que tinha acontecido não queria acreditar. Não estava à espera, não estava preparado, foi tudo muito depressa. Soube pelo telefone, pela manhã. Deixei-me cair no chão, de joelhos, desamparado, e chorei. Chorei compulsivamente durante algum tempo. Parte importante do meu Mundo tinha acabado de ruir, parte importante de mim tinha acabado de morrer.
O primeiro sentimento que temos é de revolta, de raiva, de ódio. Contra tudo e contra todos, ou talvez, se calhar, contra ninguém. No caso do meu PAI só me conseguia lembrar daqueles que, não há muito tempo atrás, não o quiseram ouvir, não o quiseram escutar, nem sequer o tentaram fazer. Esses tristes infelizes, porque é de tristes e de infelizes de quem falamos, fizeram uso da mentira, da ignorância e da crítica, mas apenas demonstraram um desconhecimento cínico, simplesmente uma maldade atroz.
A raiva, a revolta e o ódio são passageiros, Sara, porque, claro, nós somos muito superiores a tudo isso. De facto, aqueles contra quem nos revoltamos são para nós completa e totalmente insignificantes!
Depois da raiva e da revolta vem a dor. E essa, Sara, é profunda e magoa, magoa bem fundo. Uma dor dilacerante, que pensamos nunca mais acabar. Pela primeira vez na vida começamos a sentir e a ter também a consciência, apesar de breve é certo, mas crua e dura, de que nunca mais vamos poder ver e estar com a pessoa querida e amiga que acabamos de perder. E no fim de tudo aparece este novo mas estranho sentimento, bastante ténue, como uma certeza. E este misto, de “certeza” e de “nunca mais” torna-se arrasador e demolidor!
A dor, essa, faz-nos chorar. Choramos, choramos, até que, por alguns instantes, as lágrimas secam. E, lentamente, em forma de anestesia, a dor dá lugar à tristeza. Num repente, sem darmos conta, a tristeza torna-se imensa e só a conseguimos suportar porque, afinal, ainda existem algumas pessoas que são, de verdade, muito nossas amigas.
Sim, Sara, amigos, amigos verdadeiros como tu. Dos que se preocupam connosco e que nos acodem nos momentos mais difíceis da nossa vida. E nessas alturas muito difíceis são os verdadeiros amigos que nos agarram, nos amparam e não nos deixam cair!
Não sei quanto tempo esta minha tristeza vai durar, porque ela é enorme, e ainda hoje a sinto como eterna. Provavelmente vai durar para sempre. Mas sabes, Sara, eu prefiro de longe a tristeza, à dor, à revolta e à raiva. A tristeza mantém-nos fiéis ao que somos, ao que sentimos, aos que amamos. A tristeza mantém-nos vivos e unidos, apesar de nos sentirmos inertes e adormecidos. A dor, a revolta e a raiva transfiguram-nos e não nos deixam ver ou ouvir, e muito menos nos deixam respirar ou viver.
A tristeza, essa, é também substituída, a espaços, tão fugazes quanto frequentes, pela saudade e pela serenidade. E então, nessas alturas, sentimos que somos pessoas bem diferentes, olhamos para as coisas de forma bem diferente. A saudade faz-nos recordar, a serenidade acalma-nos a alma, e é o tempo que nos vai mantendo vivos. Então, deixamo-nos estar ali, simplesmente, e muito lentamente, voltamos a sentir pequenos calafrios de felicidade e de liberdade, de novo.
- O Relógio -
No dia em que me despedi do meu PAI, na Igreja, a minha irmã Ana, a mais velha de nós, ofereceu ao meu PAI uma simples palavra, apenas e só uma simples palavra. A palavra que ela lhe ofereceu foi a palavra Mão. Aquilo que o meu PAI mais gostava de fazer era certamente escrever e, com a simples ajuda da palavra Mão, a Mão que a minha irmã lhe ofereceu, para sempre, em forma de palavra, o meu PAI, onde quer que esteja e sempre que o queira, vai poder continuar a escrever!
Nessa mesma altura a minha irmã convidou todas as pessoas, as que quisessem, a entregar ao meu PAI uma palavra, qualquer que fosse, para que ele as levasse com ele para todo o sempre.
Eu, Sara, ofereci-lhe a palavra Relógio. Um Relógio do Tempo, que parou no Tempo, e que também em tempos já muito idos, me foi oferecido pela minha avó Sérgia, a mãe do meu PAI, e que pertencia ao meu avô António, o PAI do meu PAI. Desde essa altura, Sara, o Relógio tem estado sempre parado. Ficou parado no Tempo. E eu nunca tive vontade de o pôr a funcionar, apesar de o ter tentado algumas vezes. Nessa altura acho que me faltou coragem, não sei bem porquê…
Hoje tenho a certeza que esse Relógio encerra todo o tempo do Mundo em que estivemos os dois juntos, eu e o meu PAI. Esse Relógio, Sara, está hoje bem guardado e fechado, no coração do meu PAI, ao pé da Mão que a minha irmã lhe ofereceu, em forma de Palavra. Como ela diz, a Mão com que sempre nos acarinhou, a Mão com que sempre nos segurou, a Mão com que sempre nos empurrou, na vida e pela vida. A Mão com que ele nos guarda, hoje, eternamente, para todo o sempre.
A coragem que a mim sempre me faltou para por o Relógio a andar, percebo agora, esconde o receio que temos de perder para sempre os que mais amamos. Queremos tanto preservar o que achamos ser eterno que simplesmente esperamos que o tempo não passe. Nesse dia, quando percebi que tinha perdido o meu PAI, senti que tinha chegado o momento. O momento de, afinal, não deixar parar o tempo. O momento de, finalmente, tentar pôr o Relógio a trabalhar. Quando o coloquei, junto do coração, a Mão da minha irmã, felizmente, fez o resto, e o Relógio voltou a funcionar, de novo.
Assim, sempre que um de nós quiser ouvir, ver, sentir ou simplesmente estar com o outro, é preciso, apenas e só, escutar o coração, abrir o Relógio, pegar na Mão e andar para trás no tempo. Com o Relógio, agora a trabalhar eternamente, podemos recordar, sempre e para sempre, todos os momentos em que estivemos juntos, os dois, eu e o meu PAI.
- A amizade -
Nesse dia, Sara, e já depois de lhe ter oferecido o Relógio, a tristeza e a saudade tornaram-se incrivelmente serenas. Serenas porque tive sempre ao meu lado algumas pessoas que hoje considero serem verdadeiramente minhas amigas. Os verdadeiros amigos, aqueles que nas horas mais difíceis dizem sempre "presente". Aqueles que nas horas mais difíceis estão sempre connosco, mesmo quando estão longe. Aqueles que ouvem o que dizemos, sempre, e nos aceitam simplesmente como somos e pelo que somos. Aqueles que choram connosco quando nós precisamos de chorar. Aqueles que também sofrem quando também nós sofremos. Aqueles que, muitas vezes, só pelo simples olhar, sabem o que estamos a sentir e sabem bem o que nos faz falta. Aqueles que nos fazem ver o que é de facto importante.
Um desses amigos, minha querida Sara, verdadeiros, é o teu PAI. O meu PAI era um Homem Extraordinário, com qualidades inigualáveis. Tinha uma sensibilidade extrema, uma força interior inesgotável, uma ternura e um carinho infindáveis, sempre muito presentes. Era muito humano, sério, sincero, justo, frontal, honesto, convicto, responsável, mas também intransigente, rígido, firme e rigoroso. É certo e seguro que não conheço o teu PAI assim há tanto tempo, é verdade. Mas se o tempo não é por si mensurável, os sentimentos são-no. E esses moldam a amizade, criam laços inquebráveis, fortalecem-nos como pessoas, fazem-nos crescer como Homens, ajudam-nos a lutar pela liberdade e pela felicidade. Hoje, a estima que tenho pelo teu Pai é grande, e quero dizer-te que reconheço nele algumas das atitudes e valores que, a espaços, me fazem lembrar o meu PAI. Por tudo isto, Sara, quero que saibas que o teu PAI é também um Homem Formidável. E porque nos dias que correm, estas características e qualidades são tão especiais que só estão ao alcance dos grandes Homens, é imperioso saberes que tal é uma raridade, e o que é raro deve ser preservado e acarinhado.
- A Felicidade e a Liberdade -
Com o meu PAI aprendi que é a procura constante da felicidade que nos torna verdadeiramente livres. E pela Liberdade e pela Felicidade devemos lutar, sempre, até ao fim, como ele fez! Não só por nós e pelos que mais amamos. Mas também por todos os outros, sem excepção, porque também neles devemos acreditar, sempre, em prol de um Mundo bem melhor.
Por isso, minha querida Sara, mima o teu PAI sempre que puderes. Brinca com ele, sempre, sempre, sempre. Conta-lhe histórias, fala-lhe das tuas alegrias, mas também das tuas tristezas. E ri-te, diverte-te e sê feliz. E, sempre que puderes, luta pela Liberdade e pela Felicidade.
Eu, Sara, vou continuar a fazer tudo isto com o meu PAI. Para que possa continuar a amar e a acreditar. Para que possa perseguir e prosseguir tudo aquilo que ele é. Para que possa continuar a ser Livre e Feliz. Para isso fecho os olhos e tiro do meu coração o Relógio, fechado, que em tempos atrás esteve parado no tempo, apenas com receio de o perder.
Esta história, Sara, é uma pequena mas simples história de amor e de amizade, e que fica escrita no livro de memórias que hoje te ofereço. Foi escrita, claro, já com a ajuda da MÃO do meu PAI, numa altura em que a raiva, a revolta e a dor deram finalmente lugar à tristeza, à saudade e à serenidade. Numa altura em que o Relógio do Tempo voltou de novo a trabalhar.
E, para que tu possas recordar também, mais tarde, os melhores momentos da tua vida, repletos de Felicidade e Liberdade, passados com o teu PAI, utiliza este pequeno livro de memórias. Nele escreve tudo aquilo que quiseres, as alegrias, os desgostos, as amizades, os sentimentos. Nessas alturas não te esqueças, Nunca, que o teu PAI estará lá, para ti, por ti. E quando precisares pede ao teu PAI a Mão dele, que seguramente ela te ajudará, SEMPRE! Exactamente como também a Mão do meu PAI me ajudou, SEMPRE, quando eu dela precisei!
Beijos do teu grande amigo,

João

quarta-feira, 19 de maio de 2010

Para si, meu Pai

Deixamos hoje 2 cartas escritas por Gonçalo, 5º filho, uma na data do seu 36º aniversário (hoje), outra escrita em 19 de Março de 1984, por altura do Dia do Pai.
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Querido Pai,

Hoje é o dia do meu 36º aniversário. Foi em 19 de Maio de 1974 que nasci. Não sei se é verdade, se é a memória que me prega uma partida, mas acho que contava a Tia Teresa, por repetidas vezes, que o Pai subia as escadas de casa a gritar: «é um rapaz, é um rapaz!». Sou o mais novo de 5 filhos e irmãos por quem nutro o maior dos amores e respeito: a Ana, a mais velha, para mim símbolo de uma união entre irmãos como não há igual; o João, mais contido e reservado, um exemplo de Pai e marido, provavelmente o verdadeiro sucessor daquele a quem, há muitos anos, chamaram o “Pater-Famílias”; o Nuno, senhor de uma inteligência e perspicácia inigualáveis, com um percurso pessoal e profissional de meter inveja e que muito admiro; a Sofia, a mais maternal, a mais sentimental, mais próxima de mim no que à idade diz respeito, mais próxima de si, Pai, e detentora de um percurso profissional também esse já invejável e respeitado por tantos.
Porque assim aprendi consigo, e aprendi também a amá-los como tal, junto os meus restantes irmãos: o Raul, a Nini, a Ana Sofia, o Paulo, a Rita, a Madalena, o Gustavo e o Francisco. Por todos eles, nutro um amor infindável e neste meu aniversário, todos eles recordo com amor, respeito e admiração. A todos eles, deixo também esta carta.
Dos meus aniversários, hoje recordo e entendo os presentes que o Pai me deu: amor, respeito, família, união, serviço. Com sinceridade Pai, não me recordo em especial de algum brinquedo, jogo ou de qualquer outro bem material que me tenha dado e confesso, hoje, que não me fizeram nem fazem falta. O que o Pai me deu ao longo de 36 anos, imaterial, com muito maior significado que qualquer outro bem material, é aquilo que fica, guardo e guardarei para todo o sempre no meu coração.
Assim, Pai, neste dia, em que são passados 37 dias da sua partida, lhe digo que guardo hoje principalmente 2 coisas: o legado e a saudade.
A saudade. Essa palavra tipicamente portuguesa, difícil de replicar em qualquer outra língua, significado de um verdadeiro fado português.
A saudade. Por quem se sente de quem muita falta nos faz, quem tanto amámos toda a vida e aprendemos a respeitar.
A saudade. Imensa, pela falta que me faz, pela tristeza profunda que sinto por já não estar cá perto de nós, que aumenta a cada dia que passa, que não acalma nem deixa acalmar o meu coração. Não dorme de noite, não trabalha de dia, apenas vive no meu coração.
A saudade. Dos almoços que tínhamos diariamente no último ano, das conversas que tínhamos sobre o País, daquilo que “gozávamos” com alguns pseudo-políticos que se julgam servidores da Nação. Riamo-nos. Riamo-nos porque de serviço pouco sabem, pouco entendem.
E por isso fica o legado. Esse legado de entrega, de serviço, de colocar tudo o que temos naquilo que fazemos. De entender que Portugal não existe para nos servir, nós é que existimos para servir Portugal e a Nação.
Esse legado de respeito pela pessoa humana, de sinceridade, de frontalidade, de honestidade, de nunca nos deixarmos vergar nem levar por interesses.
Um legado de intransigência, por acreditar naquilo que faz e por acreditar que os outros também são capazes. Aquela dureza, aquela imagem de austeridade que guardava por detrás um amor infindável, terno e carinhoso.
Esse legado no qual tanto me reconheço e procuro replicar todos os dias da minha vida. No trabalho com clientes e colegas, em casa com a Marta, a Rita e o Zico, com as pessoas na rua, com aqueles com quem lido diariamente.
Esse legado que hoje passa para mim, para todos nós e que fica enraizado nas nossas vidas. Que fica connosco e com a Mãe, figura essencial, pilar da nossa família, dona de uma sabedoria como nunca vi em ninguém.
E agora que o Pai partiu, por entre tantas coisas, tanto sentimento, guardo com toda a força que tenho isto mesmo: o legado e a saudade.
E com isso vem uma enorme responsabilidade que, com sinceridade, sinto. A responsabilidade de fazer jus ao seu nome e que prometo Pai, tudo farei para o honrar: Nascimento Rodrigues significará para mim, sempre, família, entrega, serviço, honra, respeito, frontalidade, amor. E tudo, aqui, nesta terra que muito amo: Portugal.

quinta-feira, 13 de maio de 2010

Para ti, meu PAI

(texto escrito por João Henrique Nascimento Rodrigues, 2º filho)

Numa altura da vida do nosso país em que todos se preocupam com escutas, são raros os Homens que verdadeiramente escutam ou ouvem. Tu, PAI, a quem eu, com um orgulho infindável mas deveras contido, sempre me habituei a escutar, a ouvir e a admirar, escutavas e ouvias, sempre, sempre, sempre. Mas às vezes também sentias necessidade em falar.

Numa dessas raras ocasiões, já cansado e quase exausto, no limiar da tua própria resistência física, falaste e murmuraste: “Esperei até aos limites do humanamente possível. Vou-me embora. A minha renúncia é um acto de liberdade”.

Nessa altura, PAI, poucos te escutaram, e quase ninguém te quis ouvir. Nessa altura, PAI, Tu, que sempre tiveste uma disponibilidade sem igual, choraste, choraste e com razão. Não de revolta, raiva ou dor, mas de mágoa, impotência e desilusão. Nessa altura, PAI, ninguém te percebeu, ninguém te ligou, ninguém pensou que Tu só querias ser Livre e Feliz.

A liberdade que então proclamavas para Ti era, apenas e só, a liberdade de que um Homem tanto precisa e por que tanto anseia ao longo da vida, para ser feliz. E Tu, PAI, apenas querias ser feliz, feliz mais uma vez, feliz pela última vez. Feliz como sempre foste.

Contigo aprendi que sem LIBERDADE e FELICIDADE, viver de facto, não tem qualquer significado ou sentido. A liberdade para que, de forma serena mas inteiramente merecida, possamos morrer em paz e em sossego - desígnio apenas ao alcance dos homens verdadeiramente humanistas e singelos. A FELICIDADE, essa, para podermos voltar, apenas e só, para junto dos nossos - apenas permitida aos homens verdadeiramente simples, honestos e justos.

Os valores e princípios que sempre defendeste e praticaste, esses, permanecem intocáveis. E do que tudo contigo aprendi, não esquecerei Nunca o que de mais importante a minha memória retém: “não se nega, nunca, comida a quem tem fome” e “não se nega, nunca, a liberdade a quem quer, apenas e só, viver”.

Pela Liberdade e pela Felicidade lutaste sempre, até ao fim. Por Ti e pelos outros, para Ti e para os outros, sem excepção. Eu farei o mesmo…

quarta-feira, 12 de maio de 2010

O Último Adeus

Faz hoje 1 mês que o Pai morreu. A saudade é muito, muito grande. Neste dia, publicamos um texto escrito pelo Pai em 1957.

segunda-feira, 3 de maio de 2010

O Fim do Império

Arrumamos papéis, lentamente, com profunda saudade. O nosso neto, Henrique (15 anos), encontrou na secretária do Avô, um esboço, um rascunho, um desabafo feito ao correr da pena.
Terminava o ano de 1999.
Vamos ler “O Ouvidor do Kimbo”

O FIM DO IMPÉRIO

-1-

   Quando eu nasci, nos idos de 40 – exactamente em 3 de Agosto de 1940 – ensinavam aos portugueses do Ultramar que Portugal ia do Minho a Timor. Não estou certo de que todos os portugueses do Ultramar percebessem bem. Suspeito que deviam entender que Portugal se dizia Portugal no território ultramarino em que tinham nascido ou vivido. E foi assim que os meus Pais me ensinaram – tu és português, porque nasceste em Angola, de pais portugueses, e Portugal vai do Minho a Timor. Como era “puto”, aceitei. Percebi que havia um Portugal lá na Europa, mas não entendi mais nada, quer dizer, não souberam explicar-me que havia Moçambique, ou Timor, ou Cabo-Verde, ou a Guiné-Bissau. Quanto a Goa, Damão e Diu, isso parecia ser já um caso esquecido. E São João Baptista de Ajudá não existia – poderia ser um museu que, em parceria, nós reclamássemos como o Senegal.
   Também é verdade que, naqueles tempos, os portugueses não pensavam perder o império. A guerra alastrava pela Europa, norte de África, a Ásia – mas, quanto a Angola, não caíam bombas, não havia invasões. Portugal era neutro.
   Devo a isso o ter crescido em paz. Lá, nos confins de Angola, nos Luchazes para onde fui levado depois de nascer, o mundo era outro. Havia dois casais brancos – um dos casais era o homem e a mulher que eram meus pais, o outro serviu de padrinhos de acompanhamento. No resto, eu não tinha brancos: tinha os meninos negros com quem brincava, os meus irmãos do dia a dia.
   Com os meus irmãos negros do dia a dia, eu fui fazendo-me menino: ensinavam-me a sair do terraço da casa de meus pais para disparar pelo campo fora, para entrar no galinheiro, para trepar às árvores, para caçar pássaros com fisga, para me banhar nos riachos que povoavam os Luchazes. E aprendi com eles a usar a fisga, a atirar as pedras aos camaleões, a montar os porcos e a perseguir as galinhas da capoeira de minha Mãe – o sustentáculo dos brancos – num nascer para a vida feito de cheiros, de comeres, de suores diferentes e de um horizonte que a memória velha não perde: esse horizonte sem fim de Angola.
   Tenho a ideia de que os meus irmãos que eram meninos negros regressavam, ao fim da tarde, às suas sanzalas – às suas casas. Eu não sabia como eram. Soube depois: cubatas de capim, eles dormiam numa esteira sobre o chão, comiam um pedaço de “funge” e o lume crepitava, magriço, até se extinguir na noite e a lua vir ocupar o espaço todo. A essa hora, jantado com sopa de legumes da horta de minha Mãe, era mandado dormir. Não havia, claro, televisão, o rádio era uma voz roufenha e ocasional que meu Pai conseguia captar nas ondas. De modo que só me lembro do silêncio: era um silêncio longo, repleto de barulhos. O barulho dos pássaros que regressavam aos ninhos. O barulho das cobras que rastejavam para as tocas. O barulho das galinhas, dos porcos, das cabras e das vacas que se enfileiravam nos quartos dos currais. O barulho também das galinhas do mato, indisciplinadas, tontas; e o regresso digno, altivo, dos flamingos coloridos, passo a passo.
   Quando tudo isso tinha acabado, vinha o silêncio. Vinha? Não. Na minha cama, com a janela aberta sobre a terra, via a lua romper e com ela outros barulhos e cheiros da terra de Angola: as hienas gargarejavam metros além, os pirilampos prenunciavam a dança dos computadores futuros, os sapos ronquejavam como se não fumassem, as corujas pipiavam para nos fazer medo.
   Encolhido nos cobertores da minha cama, via e ouvia. Portugal dava-me paz, Angola dava-me vida. E foi assim que o Império me fez crescer.


-2-

   Comecei a crescer, mais tarde com rebuço no lábio superior e pelitos em baixo: em Sá da Bandeira, no Lubango. Aí já tinha passado para o Liceu – ou seja, o secundário. O mundo mudara: Portugal era colonialista e Angola tinha de ser independente. Que meus Pais, os pais de outros e outros ainda, fossem portugueses – nada a opôr. Mas que não se atrevessem a fazer obstáculo àquilo que, para mim era evidente – Angola independente, com negros, brancos, mestiços, católicos, protestantes, animistas. Poderíamos negociar uma Comunidade de Povos Portugueses – isso era questão para se ir vendo.
   Envolvi-me nessa independência de Angola. Estudei, reflecti, fiz parte de grupos, declarei que as coisas não podiam continuar assim (mas não embarquei nas lutas de libertação, pela simples razão de que não percebi de quem se tratava de libertar – havia de libertar-se os povos negros, evidentemente, mas também os homens de cor não negra que pertenciam à sua terra. E, sobretudo, se era questão de liberdade, jamais se poderia colocar como se colocava, o problema em termos de comunismo versus capitalismo).

-3-

   Na luta de libertação dos povos de Angola e de outras ex-colónias, eu não estive. Eles estavam errados. Não era uma luta de brancos contra pretos. O que eu queria era uma luta de povos – que interessava a cor, a religião, os costumes? – não contra o povo português, mas sim, em comunhão com este, em qualquer fórmula que nos permitisse viver em comunidade.
-4-

   Em Portugal, ninguém percebeu isto. Em Portugal, ouvi reclamar “não mais um soldado para as colónias”. Não precisávamos de soldados nas colónias. Precisávamos de estadistas.
   Nas colónias obviamente, ouvimos dizer “libertação nacional”. A enxurrada da desgraça mútua estava aberta.
   Olhei para tudo isso. Apeteceu-me chorar: porque não devia ser assim. Devíamos ter reconhecido a independência com dignidade mútua. Receio muito que, hoje, constatemos que não houve dignidade de parte a parte. O que não significa que não devesse haver independência. Significa, só, que não soubemos assumi-la com amor e verticalidade.
   Nós perdemos. Não teria muito interesse se, também eles, não tivessem perdido algo.

-5-
   E perderam?
   Acho que sim. Perderam algo que outro povo não dá: a sua própria identidade, os seus sentimentos, o seu próprio código genético!!
   Para que serve a um angolano, moçambicano, guineense e outros esse pretenso código genético?
   Para nada. O que eles precisam é de ajudas externas, contribuições financeiras, investimentos. Portugal dá pouco, praticamente nada. Outros dão muito.

-6-

   No dia em que os povos de língua portuguesa perceberem o que os portugueses dão, pode ser tarde. Neste mundo de globalização, de intermediação de mercados, de fronteiras abertas de comunicação, o que pode restar? Os homens.
   Muitos portugueses, neste contexto, só querem saber da Europa. A culpa é deles? É deles, sim, mas também dos povos com que os portugueses irmanaram.
   Uns e outros temos um desafio: não esquecer a história, perdoar os erros, construir um futuro comum, ao lado de outros futuros comuns.
   Quando nos levam a pensar que o dinheiro é mais importante do que o amor, tudo está perdido.

-7-

   A comunidade com que sonhei em Angola não é mais possível. Mas talvez seja possível registar que, hoje, às 4 horas de Portugal e às 24 horas de Macau, deixámos o Império com tranquilidade e dignidade.
Talvez seja possível sonhar que, amanhã, em Timor, as Nações Unidas transmitirão a bandeira para a de Timor.
   E que, num gesto de fim do Império – esse, sim, o fim do Império – Xanana Gusmão, em simbolismo, faça arrear a bandeira portuguesa e subir a de Timor.
   Então, sim, Xanana Gusmão ter-nos-á dado o fim do Império: a paz connosco, os portugueses, e a paz com os povos com que nos cruzámos.
   No direito internacional, e na diplomacia, isto é impossível: para mim, filho de colono português, esse momento seria o do reencontro: o da mistura do amor e do sol do ocidente e do oriente, sobre o mar e sob o céu, que os meus pais, colonos, me ensinaram que eram pertença dos homens de todo o mundo.