quarta-feira, 30 de março de 2011

Percursos sindicais de um Político (2)

Não podendo ignorar e defender (o que seria irresponsável) que o direito de negociação na função pública não é susceptível de ter lugar sob os mesmos procedimentos e iguais factores de confronto paritário sob que se processa no sector empresarial privado e público, o nosso pai propugnava e insistia por uma “equivalência” tão larga quanto possível entre o sistema de negociação colectiva para o sector empresarial e o de regulação negociada de condições de emprego na função pública.


Neste contexto se entenderá que viesse mais tarde, como consultor jurídico, a apoiar a criação de sindicatos representativos de trabalhadores da função pública (foi, por exemplo assessor jurídico do Sindicato dos Trabalhadores da Administração Local – STAL, nos seus primórdios); e advogaria a causa da FESAP, ligada à UGT, em conflitos de interpretação emergentes, exactamente, do preciso alcance a emprestar ao direito de negociação colectiva. Uma vez esgotada a tarefa principal para que fora contratado pelo Secretário de Estado da Administração Pública do VI Governo Provisório e do I Governo Constitucional, o nosso pai, como consultor jurídico – laboral, mantém a assessoria ao STAL e ao Sindicato dos Conferentes e de Cargas Marítimas de Importação e Exportação de Lisboa e Setúbal e é contratado como assessor de novos sindicatos democráticos que se formam no País: assim passa a ser consultor jurídico laboral da Federação Nacional dos Sindicatos de Trabalhadores Portuários, e do Sindicato dos Quadros da Aviação Comercial e presta assessoria, em negociações colectivas, aos novos sindicatos democráticos criados ou a sindicatos pré existentes com direcções eleitas democraticamente.

Por exemplo participa como consultor jurídico em negociações dos três sindicatos dos Bancários do País com as administrações da banca nacionalizada e intervém, ainda, nas primeiras negociações de Sindicatos democráticos recém-formados ( como o Sindicato dos Engenheiros do Sul, o dos Economistas, o dos Quadros Técnicos da CP) com empresas de sectores em que tinham filiados.

O essencial das suas tarefas centra-se na elaboração de pareceres jurídicos sobre legislação sindical e a do trabalho, no patrocínio judicial de acções laborais em defesa dos seus clientes e na preparação e acompanhamento de processos disciplinares de trabalho.


Consultar, por exemplo, Liberdade Sindical e Unicidade de Contratação Colectiva, edição dos Sindicatos de Quadros Técnicos, Lisboa 1980)

terça-feira, 29 de março de 2011

Percursos sindicais de um Político (1) -

Dizíamos no post de 11 de Fevereiro: “Em Setembro de 1974, e exclusivamente por se sentir coarctado no exercício independente das suas funções, requer e obtêm licença ilimitada”.


Uma vez em licença ilimitada o nosso Pai passa a exercer funções de consultadoria jurídico – laboral. Colabora com organizações sindicais e empresas em criação, às quais presta assessoria jurídica na área da legislação sindical e das negociações colectivas de trabalho. Desempenha, então, funções de consultor jurídico laboral na”Divisão de Estudos” da recém-criada Confederação da Industria Portuguesa e presta assessoria jurídico laboral ao Sindicato dos Conferentes de Cargas Marítimas de Importação e Exportação de Lisboa e Setúbal.


Ao fim de um ano deixa a “Divisão de Estudos” da CIP. É contratado, como assessor do Secretário de Estado da Administração Pública do VI Governo Provisório e do I Governo Constitucional, ficando especificamente incumbido de elaborar os primeiros ante-projectos legislativos referentes, respectivamente, ao direito de sindicalização dos agentes e funcionários da Administração Pública e da negociação entre esta e os sindicatos da função pública.


A sindicalização na função pública era interdita no regime corporativo. Não existia, portanto, qualquer regime jurídico regulador do processo de negociação das condições de trabalho no âmbito da Administração Pública. Essa era uma questão para a qual teriam de ser encontradas respostas inovatórias, ainda que inspiradas no direito comparado e nas de países europeus, e soluções consentâneas com o fluir muito rápido e imprevisível da movimentação politico-social característica da fase revolucionária vivida então em Portugal. Importa assinalar, porque de verdade histórica se trata, que as orientações propostas pelo nosso pai então na qualidade de assessor do referido Secretário de Estado, apontavam inequivocamente para um tratamento do direito sindical na função pública praticamente idêntico ao que a lei estabelecia para os demais trabalhadores portugueses. Esta orientação viria a ser acolhida pela Resolução do Conselho de Ministros, de 9 de Junho de 1976. É evidente que as opções legislativas têm sempre por detrás de si um juízo político que compete, exclusivamente aos agentes políticos. Mas também é natural que estes não sejam indiferentes à validade da argumentação técnico – jurídica que lhes for apresentada. Como se explicou não se dispunha de qualquer “experiência” nesta área.


Os objectivos de autêntica “concepção” pré-legislativa foram-no num quadro de responsabilização individual. Por isso podemos afirmar que o nosso pai contribuiu para as soluções legais que hoje reconhecem e garantem a liberdade sindical para os trabalhadores da função pública do nosso País.


Consultar – O Direito Sindical na Função Pública, caderno nº1 da Fundação Oliveira Martins, Lisboa 1977

segunda-feira, 28 de março de 2011

1981- Ministro do Trabalho - Tomada de posse do VII Governo Constitucional

Enquanto Ministro do Trabalho, a iniciativa mais ambiciosa que procura fazer vingar é a do estabelecimento de um acordo social, para a época inovatória no nosso país. Na discussão do Programa do Governo, lança na Assembleia da República a proposta de negociações com as confederações patronais e sindicais.

Na decorrência dessa proposta efectua um conjunto de reuniões separadas com os parceiros sociais. A iniciativa frustra-se, porém, por não ocorrerem condições objectivas propiciadoras de um pacto social.

Com efeito, a instabilidade política que conduziu à queda do VII Governo Constitucional, por um lado, e a gravíssima crise financeira que determinaria, pouco tempo depois, as negociações com o FMI e a aceitação pelo Governo do bloco Central, do rigoroso programa de reequilíbrio das contas externas, por outro lado, erigiram-se como factores altamente desfavorecentes dessa tentativa de concertação social.

A semente tinha sido, porém, lançada, mas só viria a dar frutos concretos em 1986, com a assinatura do primeiro acordo de política de rendimentos e preços.

domingo, 27 de março de 2011

Entrevista ao Primeiro de Janeiro 1981


As Notas Políticas (de 63 a 66), foram extraidas de uma entrevista dada (pelo Ministro do Trabalho) ao Primeiro de Janeiro, poucos dias depois de ter tomado posse o VII Governo Constitucional, presidido pelo 1º Ministro Francisco Pinto Balsemão

Notas Políticas (66)

Quando se quer “mexer” num aspecto, seja ele do trabalho ou do emprego, sem o enquadrar no todo em que se insere e sem tomar em devida conta as repercussões sociais e económicas, corre-se o risco de actuar ao jeito daqueles doentes cronicamente insatisfeitos que todos os meses mudam de médico e de receituário. Acabam por piorar da doença, quando não arranjam até novas doenças… Mas tenho igualmente presente a outra história: a dos doentes que, por não serem atendidos a tempo e devidamente, vêm agravados os seus males. É neste contexto melindroso que assumirei as minhas responsabilidades (Enquanto Ministro do Trabalho). Espero que os parceiros sociais e outras entidades também saibam assumir a quota parte de participação e de responsabilização que lhes compete

Notas Políticas (65)

É necessário que o desemprego diminua e isso exige que todos assumam, na interacção do seu protagonismo, uma actuação mais incisiva. Esta tem de ser uma preocupação permanente. Mas não nos iludamos. As medidas a adoptar com vista à diminuição do desemprego passam por áreas diversas (o investimento, o crédito, a inovação tecnológica, as infraestruturas económicas e sociais, etc.), incluindo a área legislativa laboral e a área legislativa da segurança de emprego e dos rendimentos salariais ou substitutivos

Notas Políticas (64)

Entendo que uma sociedade justa se assume pela inexistência de prerrogativas seja de quem for. Direitos sim. Mas estes hão-de existir e ser exercidos em função de valores que a própria comunidade considere como socialmente validos. A segurança de emprego é um desses valores. Não se pode, no entanto, confundir segurança de emprego com manutenção artificial de postos de trabalho ou a subsistência de postos de trabalho improdutivos. Isso é uma falsa segurança, que acaba sempre por colocar em causa os interesses dos próprios trabalhadores. Temos, portanto, que avaliar o problema do despedimento à luz de um valor irrecusável, que é o da segurança do emprego. A questão está em precisar melhor o conteúdo deste conceito e em ajustá-lo equilibradamente às exigências socioeconómicas que ele próprio pressupõe.

Notas Políticas (63)

Os bons sindicalistas e os bons negociadores patronais não são os que, face às divergências que os opõem, cortam o diálogo e correm a pedir auxílio a instâncias que supõem dever resolver o que eles próprios deveriam esforçar-se por resolver. O recurso a essas instâncias só tem justificação, e só ganha legitimidade, depois de completamente esgotadas todas as tentativas sérias de acordo directo. É isto o que distingue a negociação livre e responsável da negociação tutelada. Ora, a negociação tutelada é uma manifestação de atraso cívico, cultural e socioeconómico. Todos deveríamos ambicionar a ultrapassagem dessa situação.

sexta-feira, 25 de março de 2011

Política Salarial

Em regime democrático, o Estado não “manda”, não impõe uma política salarial. Isso seria a negação da liberdade sindical e da negociação colectiva. Salvo em períodos excepcionais de graves perturbações e crise, que podem fundamentar temporariamente uma política salarial de algum modo dirigida pelo Estado (é o caso das leis de congelamento salarial e dos tectos fixados por lei), os governos democráticos não podem nem devem interferir unilateralmente. Isto não significa que o Governo deva ser indiferente à evolução salarial. O Governo tem, nesta área, responsabilidades acentuadas, em especial no que respeita à lei dos salários mínimos nacionais e às orientações de política salarial para as empresas públicas, cuja tutela cabe, neste aspecto, aos Ministros das Finanças, do sector respectivo e do Trabalho.

Quanto às negociações salariais para as empresas privadas, não cabe ao Governo qualquer tutela, mas é legítimo esperar uma coerência entre a evolução salarial dos sectores público e privado, sob pena de se aumentarem as disparidades e discriminações de rendimentos.

Se quiser, agora, conjugar tudo isto com a contenção do ritmo de crescimento dos preços, com o preocupante problema do desemprego, com a necessidade imperiosa de investimentos criadores de novos postos de trabalho, com a inevitabilidade de melhorias na segurança social, com uma mais justa repartição do rendimento e uma redução das desigualdades sociais, e tantas mais coisas – que conclusão surgirá?

Do meu ponto de vista, é aqui que ganha todo o significado a necessidade de se estabelecer um quadro geral de linhas de orientação e decisão, sob o qual se possa levar a cabo uma política salarial mais correcta e mais justa, interligada com outras políticas.

Parece evidente que as centrais sindicais e as organizações empresariais têm, aqui, um papel decisivo a desempenhar. Em suma, ou conseguimos, progressivamente embora, delinear e concretizar um “modelo” deste género, ou continuaremos com uma política salarial isolada do “mundo” socioeconómico, feita aos repelões de cada momento diferenciado da contratação e divorciada de objectivos de fundo, de médio e longo prazo.

E nisto tudo está, em palavras sumárias, o que considero um dos grandes desafios da política de relações de trabalho em Portugal. Desafio que é dirigido a todos: Governo, trabalhadores, empresários, sindicatos e organizações empresariais. Por isso é que seria preciso, em nome da liberdade e da responsabilidade, em nome da justiça social, da modernização da economia e da solidariedade nacional, responder a esse desafio pela via da negociação social livre e do consenso responsavelmente assumido.


Entrevista a “O Primeiro de Janeiro” (1981)

quinta-feira, 24 de março de 2011

Uma concertação social renovada em Portugal

A concertação social é um instrumento de construção do progresso.Mas só é possível construir solidamente na base da confiança mútua e no reconhecimento recíproco dos valores e dos interesses de cada parte. As sociedades que procuram evoluir para patamares mais perfeitos de qualidade de vida e de condições de trabalho dos seus cidadãos defrontam-se com o desafio de compatibilizar dois grandes objectivos: modernização económica e segurança cívico - social.
A esta luz, é compreensível que também entre nós as confederações patronais reivindiquem uma margem mais ampla de flexibilização na gestão, na organização e nos processos de trabalho, tal como é entendível que as centrais sindicais reclamem menos precarização do emprego e maiores salários, em suma melhor segurança.
Não perceberia a razão porque os patrões portugueses seriam qualificados de reaccionários por desejarem o que o empresariado dos países evoluídos exige (e, em muitos casos, já tem), tal como não perceberia a razão porque os nossos trabalhadores seriam acusáveis de dogmáticos por defenderem condições de dignidade profissional e de bem - estar social irrecusáveis neste dealbar do novo século.
A primeira atitude a adoptar é, pois, a de entender a boa razão das posições de cada parte, à luz dos correspondentes interesses próprios e no quadro mais global dos interesses gerais do desenvolvimento económico e do progresso social do País, tal como ele for desenhado nas suas grandes linhas por um consenso mínimo e realista.
Estarão as confederações e as centrais sindicais em condições de entender os valores que comandam as posições e de captar os interesses que respectivamente protagonizam os componentes de cada bloco? Se assim for, nenhum insucesso dramático saldará a iniciativa a que meteram ombros. Nem sempre a negociação se conclui por um acordo.
Mas sempre deveria encerrar-se pelo reconhecimento mútuo de que, afinal, se compreenderam melhor as perspectivas e interesses legítimos de cada lado, e de que um novo e futuro passo no diálogo é possível e desejável, como resultado da validade e dos passos passados e em expectativa valorativa dos passos futuros.



Excerto de um artigo de opinião, publicado em Março de 1990, "Diário de Notícias"

quarta-feira, 23 de março de 2011

Pequenas estórias (Luto académico)

19 de Abril de 1962

Acabo de receber a tua carta. De facto, nada sei sobre o que me contas acerca do Lumbralles. As últimas notícias que tive diziam respeito ao encerramento das Associações de todas as Faculdades e que também tinham começado a fazer prisões entre os dirigentes. Mais nada. Parece estar decidida a continuação do luto para o 3º período e estou em crer que a maioria aderirá.
Não sei que posição tomarão os professores, mas tenho a impressão de que muitos também não sabem o que hão-de fazer. Estou farto de estudar nestas circunstâncias. Anseio pelo dia em que possa começar a trabalhar normalmente, a fazer a minha vida, como me apetece e sem pressões de quem quer que seja. A verdade é, porém, que as tendências do mundo moderno são absolutamente ao inverso: o homem de hoje não é mais do que uma pequena peça de uma grande engrenagem, à qual tem de se submeter. Felizes os pigmeus e os papuas.
Ontem encontrei na caixa do correio um panfleto miserável, desses que circulam anonimamente, o qual se propunha debater o problema de Angola.
Pois, para eles, o problema de Angola resolve-se assim: o exército deixa de lutar e entabulam-se negociações com os terroristas.
Eram praticamente 3 páginas só a falar nos pobres pretos, vítimas indefesas do colonialismo salazarista; e uma referência muito ligeira sobre a população branca, dizendo que os interesses desta deveriam ser salvaguardados – isto para despistar. Bem sei que papeluchos destes não devem merecer a mínima atenção, mas não consigo deixar de pensar que há gente que pensa daquela maneira e que haverá muito mais gente que aderirá a esse pensar.
Nota: A 23 de Março de 1962, como consequencia da proibição, pelo governo de então, da comemoração do dia do estudante, desencadeia-se forte carga polícial sobre a academia concentrada em plenário na cidade Universitária. Faz hoje 49 anos. Foi o "luto académico"

terça-feira, 22 de março de 2011

Pequenas estórias ( Valença do Minho)

Valença do Minho 11 de Agosto de 1962



Parece-me que é a primeira terra na Metrópole em que me sinto relativamente bem. Isto aqui é calmo, tranquilizante e depois do ano de nervos que atravessámos faz-me bem aspirar esta paz. O que mais adoro é ir à tarde para o pinhal descansar e depois tomar a minha banhoca no rio. Ainda não me interroguei a mim próprio sobre o que sinto por não ter ido a Angola.

Eu sou estranho, sabes? Amo Angola apaixonadamente, e todavia até aqui não tenho tido muitas saudades. Talvez porque de antemão me convenci que este ano não iria; talvez porque a preocupação de vencer o ano sobreleve tudo; talvez porque me queira acostumar a não sentir muito desagradavelmente tudo quanto não vem à medida dos meus desejos – porque quer que seja, a verdade é que é uma tristeza muito relativa aquela que tenho. Sempre pensei, muito no íntimo, que não seria assim. Mas é assim. Será que um rapaz, quando chega à minha idade, começa a sentir a sua própria vida, a sua vida independente do passado? Será que é a vida futura o que apenas começa a contar? Porquê assim? Hoje preocupo-me apenas com o amanhã e esse amanhã eu já o penso, mas desligado em larga escala de todo o meu passado. Às vezes penso se gostaria efectivamente de regressar ao passado. A princípio a minha resposta sempre foi positiva. Mas, hoje creio que o deixou de ser. Recordar não é viver. Um homem só começa a recordar e a desejar voltar ao passado quando o amanhã não lhe apresenta perspectivas. A nossa geração é uma geração de sacrifícios e vive numa época de crise, instabilidade e frustração. Quero dizer, as perspectivas de futuro não são boas. Mas eu sinto, não obstante, que há um futuro que tem de ser vivido, o mais completamente vivido. E quero fazê-lo. É por isso que em mim tudo se começa a perspectivar em termos do amanhã. E quando eu penso no amanhã, o ontem começa a surgir um tanto longinquamente. É um erro pensar que o passado pode regressar. Tenho saudades, é certo, do que passou. Tanto que gostaria de rever os lugares onde nasci e cresci. Mas nada mais do que isso – rever. Sei que encontrarei recordações, mas nada que me possa prender, porque o que me interessa é o futuro e este é tão diferente do passado…


Fotografias

Valença do Minho, margem do rio, e baluarte da muralha,- vista de Tuy

domingo, 20 de março de 2011

Pequenas estórias (25.12. 1960)

Ainda nos lembramos do que o Ouvidor do Kimbo nos contou, durante as férias passadas no Uíge, em 1959? O que acham que ele diria de um Natal passado numa aldeia do Alentejo em 1960? Vamos ouvir.

Não fazes ideia de quanto eu daria para me apanhar em Lisboa! Nunca na minha vida desejei tanto fugir de uma terra como desta! É horrível. Tudo quanto eu te possa contar representa um milésimo da realidade. Póvoa e Meadas é qualquer coisa parecida com o inferno. A linguagem desta gente é semi-barbara e indecifrável. Estamos mesmo ao pé de Espanha mas não há caminho directo. Se fores ao mapa, é possível que lá não encontres o nome desta aldeia medieval, mas podes localizar-me mais ou menos, pois está situada entre Portalegre e Castelo de Vide. Póvoa é uma aldeia completa. As ruas não têm mais de cinco metros de largura e são tortuosas. As casas, desalinhadas, baixas e feias. Há lama em toda a parte e os porcos chafurdam no jardim da freguesia. Os Correios de cá (Correios?) ainda trabalham a petróleo e creio que a correspondência leva dois dias a chegar ao seu destino.
Não calculas o frio que faz. Um frio como eu nunca supus haver.
A casa não tem aquecimento eléctrico e ainda por cima o meu quarto fica na parte mais ventosa. Os lençóis da cama parecem estar molhados. É a antecâmara do inferno! Passamos os dias sentados à lareira, onde as conversas, evidentemente, não me interessam nada. O termómetro marca 5 graus, e, isto, é na sala onde está a lareira! Agora vê como estará no meu quarto. Onde eu me vim meter meu Deus.! Agora é que me convenci para sempre de que nunca poderia viver na metrópole.. Dói-me horrivelmente a cabeça de estar o dia todo a apanhar o calor da lareira e a fumar, e, ao mesmo tempo tenho o corpo absolutamente gelado com a temperatura. Não posso suportar o pensamento de que ainda tenho que cá ficar uma semana e tal. Crê que não exagero na minha descrição. Ficar à lareira sem fazer nada senão conversar com pessoas desconhecidas, é simplesmente morrer vivendo.

sábado, 19 de março de 2011

Saudades do Avô (5)




Casa da Takula Agosto de 2009

Belezas de Angola

VIAJANTE

Terra minha de saudade longe
de trazer cá dentro como uma fé
ou até como uma secreta dor...
Langor com gosto de café
tambor que mão de ritmo tange
fumo de unguiriti na tardinha
da sanzala embrulhada no poente.
Rumores de Luanda, Lubango, Benguela
e sobretudo saudades dela.
Às vezes quando ando por fora
e me perguntam donde venho
vem uma saudade bem fininha
me pôr facas nessa hora…
Chega-me uma infinita mágoa
a encher meus olhos de água
fico triste e cheio de desgosto
porque afinal penso que queria
que estivesse marcado no meu rosto
Como, a marca de água num papel
marcada a mágoa em minha pele…
Terra minha de saudades longe…
fico com raiva de seres assim
tão atrasada e sem gente
tão pobre e cheia de riquezas
tão triste que tuas tristezas
de uma maneira pungente
vêm morar dentro de mim
Terra minha de saudades longe…
ardendo o rubro fogo das queimadas
no escuro das noites estreladas
Floresta e deserto certeza de futuro
no presente incerto.
terra minha de saudades longe
de trazer dentro do coração
como uma prece… ou uma maldição


Poesia de Albano Neves e Sousa (1961)

sexta-feira, 18 de março de 2011

Para os Ouvidores do Kimbo

Este artigo foi publicado num jornal regional de Famalicão dias depois de 12 de Abril de 2010 e é da autoria da Professora Edna Cardoso. Diz o seguinte:

…".Significa um tributo, reconheço que humilde, a uma personalidade da vida publica nacional que acaba de nos deixar.
A quem, a primeira imagem que conservo na memória está associada ao seu relacionamento com o mundo do trabalho e com o movimento sindical que foram, são, para mim uma das minhas paixões. Segmentos do modelo de um estado democrático que o Dr. Nascimento Rodrigues corporizou e onde interveio de forma exemplar e impoluta.
Eram tempos muito difíceis mas em que, com seriedade, se procuravam soluções. Eram tempos em que interesses pessoais ou corporativos ocultados por entre manto de espessa neblina não tinham lugar à mesa.

Soube-o, mais tarde, militante do PSD integrando a sua ala esquerda.
Um social-democrata de raiz. Uma das muitas figuras que à medida que vão desaparecendo vão deixando que o PSD se torne num partido cada vez mais incaracterístico. Cada vez menos social-democrata.
“O Ouvidor do Kimbo” é um titulo de simbiose, pois advém quer de Portugal, que é a minha Pátria, quer de Angola que é a minha Terra. Pretende ser um blogue de memórias e de saudades, de poesia, de estórias e de comentários políticos, os melhores para a gente rir…”
Foi por este meio, a blogosfera, que o Dr. Nascimento Rodrigues manifestou a gratidão aos dois países, a Angola onde nasceu e a Portugal que o acolheu. Nunca esquecendo pelo meio a política..
Essa Angola onde os olhos se espraiam num mar multicolorido. Onde se respira o ar da anhara… do deserto… da floresta… Onde se inala o aroma da flor do café…da acácia rubra…da rosa de porcelana mesmo que o não tenham. Onde o sol ao pôr-se por trás do morro do Sombreiro ou das palmeiras da Ilha do Mussulo oferece um espectáculo natural único no mundo. Onde o Zaire… o Quanza…o Cunene…o Cuando… o Catumbela… Imensos em seu leito cristalino, correm serenos a abraçar o Atlântico.
Quem sabe, se nessa viagem de onde não se regressa, o Dr. Nascimento Rodrigues terá a oportunidade que lhe faltou para regressar aos Luchazes das suas origens e seu berço. Ali mesmo encostado ao planalto do Bié onde eu nasci.
Por aqui me fico por hora… Terminando com um provérbio que o Dr. Nascimento Rodrigues qualificou de provérbio saloio.” Se não gostas do que lês, pois não leias”… Um louvor à liberdade."

Publicado em “O Povo Famalicence” pag 6 (20 a 28 de Abril de 2010)

quinta-feira, 17 de março de 2011

Sindicatos e Partidos Políticos (7)

A verdade é que as lideranças partidárias não aceitam de bom grado que o protagonismo dos “seus” dirigentes sindicais ponha em causa os interesses e objectivos da estratégia partidária e o comando da própria liderança - e daí nem um passo irá até à tentativa, consumada ou não, vitoriosa ou frustrada, de anexar ou subordinar àquelas finalidades a acção e decisões sindicais, sobretudo quando estas atinjam forte impacte a nível nacional.

A essa natural tentação das lideranças partidárias só uma genuinamente forte e autónoma liderança sindical se pode opor com sucesso, o que pressupõe a autonomia medular das próprias associações sindicais.
O formalismo jurídico das concepções não é o melhor conselheiro para julgar destas coisas. Sendo os interesses o que são e os homens seus autores e actores, não é curial esperar um rosto celeste para o mundo terrestre das relações recíprocas do sindicalismo e dos partidos…
Mas será já, porventura, espectável e exigível que os altos dirigentes partidários e sindicais (precisamente porque o são) assumam e exerçam o seu específico estatuto na base de um relacionamento claro, estabelecido sob um entendimento consensual a respeito da matriz básica do subsistema de relações industriais e da subsunção harmoniosa deste no sistema político do País. Essa é a questão de fundo. O resto são peripécias mais ou menos importantes, e para alguns chocantes, da história das conjunturas politico-sindicais.

Diário de Notícias 1 de Março de 1992

quarta-feira, 16 de março de 2011

Sindicatos e Partidos Políticos (6)

Seria profundamente absurdo que o sindicalismo, enquanto expressão magnífica de uma liberdade associativa fundamental, postulasse a recusa ou o condicionamento de outras liberdades fundamentais, no caso, o direito à opinião e a liberdade de expressão que outros possam ter e querer exprimir acerca das questões sindicais.
Reconheça-se, em todo o caso, quão difícil é, no mundo quotidiano da política, estabelecer fronteiras precisas entre a reserva da autonomia sindical e a reserva da autonomia partidária.
A delicadeza da construção nunca acabada da democracia e o enriquecimento harmonioso das suas componentes representativa e participativa exigem, assim, particulares resguardo e cautela para que não se resvale do campo das autonomias para o das interferências abusivas, e não se descambe do domínio dos relacionamentos naturais entre partidos e sindicatos (em particular quando homólogos ou vizinhos) para a esfera das intromissões espúrias.
Evidentemente que essa exigência é recíproca, pelo que também se impõe aos dirigentes sindicais que não invadam o campo da autonomia partidária….
Sem ignorar que não deve esperar-se da lei o que melhor se esperará dos homens, não seria, afinal, vantajoso para os próprios sindicatos e suas centrais que os respectivos estatutos determinassem, sem equívocos de consequência, a incompatibilidade dos cargos de direcção sindical com cargos de direcção partidária e parlamentar?
Não garantiria tal solução uma mais consistente autonomia sindical e uma mais aberta transparência nos relacionamentos do sindicalismo com os partidos e outros agentes políticos, económicos e sociais?


Diário de Notícias 1 de Março de 1992

terça-feira, 15 de março de 2011

Sindicatos e Partidos Políticos (5)

A liberdade e independência sindicais significam o reconhecimento de que as organizações sindicais titulam com autonomia plena os interesses dos seus representados e são soberanas na formulação interna desses interesses e na projecção com que concretizam na sociedade, momento a momento, a conceptualização do seu específico modelo de defesa dos trabalhadores.

Deste direito fundamental, universalmente reconhecido, decorre a irrecusável exigência de que outras instâncias, agentes ou organizações não interfiram na liberdade, que exclusivamente assiste aos sindicatos, de forjar e levar à prática a estratégia e objectivos conducentes ao que entendam como sendo da esfera de defesa dos direitos e interesses dos trabalhadores.

Por isso, no plano ético-político e jurídico-constitucional, é seguramente reprovável que dirigentes não sindicais se envolvam e imiscuam na resolução das questões sindicais, procurando controlar e subordinar aos seus próprios, e porventura muito legítimos desígnios, aquele direito histórico e basilar, que todos devemos preservar e garantir no âmbito próprio em que é reconhecido e deve exercer-se.

Mas da liberdade e independência sindicais já não decorre a ilegitimidade de apreciação das condutas sindicais e dos seus reflexos concretos, designadamente no plano nacional, por parte dos partidos ou outras organizações representativas de legítimos interesses dos cidadãos.
Por isso, não comungo o entendimento que acabaria, afinal, por conduzir à tese de que a independência sindical acarretaria o reconhecimento de uma “coutada monopolística”do sindicalismo, politicamente incensurável.

Creio que isto seria inadmissível em democracia aberta porque atentatório das liberdades e direitos de cada cidadão e desvirtuador da autonomia própria de representação de outros interesses ela também reconhecida e atribuída a agentes diversos que são pilares do regime democrático e protagonistas da sociedade plural.

Diário de Notícias 1 de Março de 1992

segunda-feira, 14 de março de 2011

Concertação Social - a 25ª hora

Está a chegar a hora em que se esgotarão as condições para um acordo de concertação social.
A relação triangular que singulariza a concertação social, por um lado, e o papel positivo e estabilizador que pode exercer no plano da necessária articulação das políticas económica e social e da sinergia do desenvolvimento sustentado do país, por outro lado, induzem-me de há muito ao entendimento de que ninguém deve interferir no decurso das negociações tripartidas.
Este é um processo e um assunto exclusivo das três partes nela envolvidas até ao momento em que o concluam, com ou sem sucesso. Por isso não vou, neste soar da 25ª hora, infringir regras que a lei e o meu próprio entendimento impõem. Nada me impede, porém, de formular uma sintética reflexão publica sobre a concertação social, hoje e em Portugal, observando os limites da “não ingerência”a que atrás aludi. É usual falar-se da concertação social como um processo tripartido de negociações. De facto, trata-se de negociações entre Governo e os parceiros sociais em pé de igualdade. Todavia, este plano de igualdade negocial não pode adulterar o estatuto peculiar de cada parte. Significa isto que os parceiros sociais trazem para a mesa das negociações a defesa dos interesses de que se reclamam representativos e não a defesa do interesse nacional.
O Governo, esse, discute e intenta alcançar compromissos com os parceiros sociais, mas sempre sob a veste – igualmente legítima e natural - de representante, democraticamente mandatado pelo voto popular, do interesse nacional.
Isto tem de implicar negociações, sob pena de se transformar num diálogo de surdos ou resultar num “diktat”unilateral. Partilha de esforços, partilha de sacrifícios, partilha equitativa de benefícios através deles consensualmente alcançados - eis o significado mais fundo da concertação social, do meu ponto de vista.

Nesta 25ª hora da concertação social, é preciso trazer à colação esse significado. Talvez não valha nada.
Eu acredito que vale o que vale: porque se alimenta de valores de solidariedade e de coesão nacional, arranca de raízes de responsabilização e de confiança comum, aposta na conciliação entre emprego, capital e trabalho, Estado e sociedade e porque fraterniza as gerações do país – vale a pena vencer o desafio da concertação social. Na hora certa e irrepetível.

Excerto de um artigo publicado a 10 de Outubro 1994 (O Público)

domingo, 13 de março de 2011

Sindicatos e Partidos Políticos (4)

A luta laboral não se trava hoje apenas entre o patronato e os sindicatos, isto é, a luta reivindicativa não se joga apenas a dois, - organizações patronais e sindicais -, visto que, directa ou indirectamente, o Estado está presente e pesa, embora de maneiras diferentes na solução dos problemas.

É impossível negar que hoje a acção do sindicalismo é política, ou tem grandes repercussões políticas, mas até onde deve ir essa evolução por forma a que ela não altere a fisionomia do sindicalismo como movimento autónomo?

É que a irrupção do sindicalismo na política tem outras consequências. A partir do momento em que as sociedades actuais são sociedades em que o poder político corporizado no Estado e no seu aparelho atribui a este acrescidas responsabilidades no domínio económico e social, a questão das relações entre partidos e sindicatos torna-se uma questão central. O sindicalismo pode desinteressar-se dos programas, da política e do comportamento dos partidos políticos?
Quais são as possibilidades de não inquinar esse nexo de relação, dito por outras palavras, quais são as condições para que a luta sindical seja autónoma, logo, não conduzida indirectamente e/ou não apropriável pelos partidos políticos?
É necessário que haja, para esse efeito, um não relacionamento entre sindicatos e partidos políticos? Ou pode haver relacionamento, mas, então, em que termos?
1981, Manuscrito

sábado, 12 de março de 2011

A morte não é nada

“A morte não é nada.
Apenas passei para o outro lado do caminho.
O que eu era para vocês continuarei a sê-lo.
Dêem-me o nome que sempre me deram.
Falem comigo como sempre falaram.
Não mudem o tom, a um triste ou solene.
Vocês continuam a viver no mundo dos homens, eu estou vivo no mundo do criador.
Continuem a rir com aquilo que nos fazia rir juntos.
Rezem, sorriam, pensem em mim, rezem comigo.
Que o meu nome se pronuncie em casa como sempre se pronunciou.
Sem nenhum ênfase ou rosto de sombra.
A vida continua significando o que significou: continua sendo o que era.
O cordão da união não se quebrou.
Porque estaria eu fora dos vossos pensamentos?
Apenas porque estou fora da vossa vida?
Eu não estou longe.
Somente estou do outro lado do caminho.
Vocês que ainda aí estão, sigam em frente.
Redescobrirão o meu coração.
E nele redescobrirão a ternura mais pura.
Sequem as vossas lágrimas e se me amam, não chorem mais.
A vida continua como sempre foi.”


Oração de Santo Agostinho
Onze meses. Hoje

sexta-feira, 11 de março de 2011

Sindicatos e Partidos Políticos (3)

E daqui derivam consequências importantes nomeadamente no domínio da concepção do papel ou do estatuto que o movimento sindical se atribui a si próprio.

Se outrora as despesas públicas correspondiam à necessidade do Estado fazer face à obrigação de assegurar um mínimo de serviços públicos, hoje em dia as despesas públicas são também em certa medida, despesas de investimento, e não apenas do sector público, mas também no sector privado através da via das subvenções ou facilidades financeiras e fiscais a empresas privadas e estas despesas podem inscrever-se num plano económico nacional.

Perante este tipo de Estado moderno, face a tais atribuições e a tais responsabilidades económicas e sociais, o sindicalismo não pode ficar neutro ou manter-se passivo.

Por isso, as organizações sindicais são arrastadas a precisar as suas concepções e a formular as suas preposições com base nos seus projectos, do ponto de vista das classes trabalhadoras e com o objectivo dominante da defesa dos seus interesses por forma a poderem dar resposta aos problemas da actualidade.

O sindicalismo actual encontra-se assim face à necessidade inafastável de uma intervenção na vida política.
As expressões tradicionais de “não fazemos política” ou “ deixar a política à porta de entrada da sede do sindicato” têm de ser, assim, reformuladas, em ordem a ganharem um sentido diferente do sentido histórico, que era o do afastamento entre Estado e sindicatos, e entre Estado e partidos políticos.
Manuscrito 1981

quinta-feira, 10 de março de 2011

Sindicatos e Partidos Políticos (2)

Se os partidos políticos são organizações que visam conquistar o poder com vista a gerir uma sociedade de uma certa forma – forma esta que tem a ver com o interesse dos trabalhadores -parece ser inviável ao sindicalismo alhear-se da existência de partidos políticos.
Ora isto coloca o problema do relacionamento entre sindicatos e partidos.
Que forma de relacionamento é a que melhor garante a autonomia sindical? Esta questão tem a ver com a questão do modelo de sociedade.
Se o sindicalismo aceita, basicamente, as estruturas actuais do sistema, então a sua função não é a de agente principal de transformação social.
O sindicalismo limitar-se-á à pura defesa dos direitos laborais, melhorando nos limites do próprio sistema as condições de vida e de trabalho. Creio que esta é, no fundo a situação do sindicalismo americano. Mas convêm frisar que isto não tem nada a ver com a questão da “dureza” ou da “moleza” do sindicalismo, da sua força organizatória e dos êxitos da sua acção reivindicativa.
Eu penso que a questão do papel do sindicalismo na sociedade está no centro, é a essência do problema da autonomia.
No fundo trata-se de saber se o sindicato se atribui a si próprio um papel de contestação - reivindicação, de “poder compensador ou contrapoder”, de rectificador das injustiças e desigualdades; ou se, ao invés quer ir mais longe e portanto atribuir-se igualmente um papel de agente essencial de transformação social, lado a lado com os partidos e outras forças sociais.


Manuscrito 1981

quarta-feira, 9 de março de 2011

Sindicatos e Partidos Políticos (1)

O problema da autonomia sindical supõe uma relação. Não se é autónomo sem o ser em relação a algo. No fundo, a autonomia coloca-se em relação ao condicionalismo total envolvente, económico, político, social, cultural, confessional, etc.

Trata-se, por conseguinte, de apurar apenas em que medida se concepciona e se pratica essa autonomia.
Existe um certo entendimento da relação entre defesa dos interesses dos trabalhadores e o sistema social presente, entendimento que se articula, lógica e necessariamente ainda, com um projecto de futuro.
O sindicalismo, não pode consequentemente ignorar a política.

Mas esta situação recoloca o problema, velho, das relações entre as organizações sindicais e os partidos políticos, e o problema da intervenção sindical na política, ou seja, na concepção concreta da sociedade existente e futura.
Isto dito, importa fazer um esforço para se dilucidar qual deve ser o tipo de intervenção do sindicalismo na política. Ou seja: até onde pode e deve ir o tipo de intervenção do sindicalismo no processo de tomada de posição a nível nacional ou a nível sectorial, de forma a não perder a sua identidade de organização de defesa dos interesses dos trabalhadores, face aos governos e aos partidos políticos?

Manuscrito, 1981

terça-feira, 8 de março de 2011

SÓ, COM OS MEUS SONHOS.

No sábado, o meu tio “deu-me” a carrinha e sozinho, (sozinho, hein?!), fui para a estrada ver se caçava alguma coisa. Também foi maravilhoso. Foi a primeira vez que me passaram um carro (aliás, carrinha) para as mãos, sem ninguém a meu lado. Claro que não tinha interesse nenhum em caçar!!! O que eu quis foi sentir-me sozinho, no meio do mato, com uma estrada esburacada e uma carrinha a guiar! O que eu fiz e o que eu sonhei! Senti-me tão criança e tão homem ao mesmo tempo, que não fazes ideia. Em primeiro lugar, fartei-me de dar curvas e fazer manobra. Ri-me sozinho. Ri-me porque senti que a vida na Metrópole, por mais desgostos que nos traga ainda, é uma simples etapa; ri-me porque senti-me feliz e sei que o hei-de ser quando regressar a Angola. Para quê preocuparmo-nos em Lisboa ? Naquele momento era feliz. Que me importa que ainda venham dias maus? Sabê-los-emos vencer. Depois há-de voltar sempre o tempo bom. Andei mais de três horas a guiar e gastei quase meio depósito de gasolina! Quis experimentar a velocidade, e sabes a quanto cheguei? – A 110. Dou-te a minha sincera palavra de honra! Em estradas de Angola é difícil conseguir-se atingir essa velocidade, mas as estradas estão em bom estado e a carrinha desenvolve bem. Quando regressei ninguém acreditou em mim. Voltamos de novo à estrada e de novo 110. O meu tio ficou parvo…e cheio de medo, claro! Houve um momento em que a carrinha apanhou um bocado de areia e quase derrapou. Àquela velocidade, se não a aguento, era morte certa. Mas, felizmente, agarrei-me ao volante com calma e mantive-a dentro da estrada. É uma sensação formidável dar 110! Só se ouve o vento a assobiar forte nas janelas e só se vê o mostrador das velocidades. Eu senti, que naquele momento tinha a minha vida nas mãos. Bastava um simples imponderável para tudo se perder num ápice. É uma sensação de terror e de felicidade ao mesmo tempo! Tenho a impressão de que não volto a repetir o que fiz, embora o tivesse feito conscientemente.

Carmona Verão de 1959

domingo, 6 de março de 2011

Quedas do Duque de Bragança (Kalandula) (1)

Quedas do Duque de Bragança (Kalandula)

Roteiro de Viagens

Vamos por partes: Ao fim e ao cabo, acabei por sair de Luanda na 6ª feira de manhã. Só sábado - por volta das seis da tarde, cheguei a Carmona.
A viagem, pode-se considerar razoável. Apanhámos, ainda, um mau pedaço de estrada, mas foi pequeno.
Almocei às quatro da tarde, num vilarejo de nome Vista Alegre e às 7 chegamos ao posto do Quitexe onde pernoitamos. O Quitexe já é uma vilazita engraçada, praticamente encravado entre montanhas, sem ruas asfaltadas (mas onde paira um ar de paz e de indefinível tranquilidade), com alguma luz eléctrica que, se não abrange toda a povoação, tem alguns sítios com lâmpadas fluorescentes. A casa do chefe do posto pode considerar-se uma maravilha para o meio e não envergonharia Luanda. Pois foi ali, que resolvemos pernoitar. Deitei-me cedo, já pouco acostumado a estas andanças. Dormi maravilhosamente e, no outro dia, às 6 da manhã já estava a pé.
Abri a janela, e não calculas o entrechocar de emoções que eu senti. Nem te saberei explicar.
Senti uma alegria como há muito tempo não tinha. Que saudades de poder escutar um pouco de silêncio e de paz.
Campos em fora o sol inundava tudo e vinha até mim um cheiro muito meu conhecido e, sobre tudo, – muito querido, o cheiro do mato. Foi maravilhoso voltar a sentir aquela emoção de felicidade, aquele cheiro peculiar a terra, a capim, a campo, voltar a respirar aquela atmosfera de Paz e poder olhar em redor sem ver gente nem casas.
O grande prazer desta minha viagem é o facto de sentir de novo pesar sobre mim a paz destes campos de Angola, ver este sol tão cheio e tão vermelho, sentir o cheiro do mato, enfim, tudo quanto diz respeito à terra propriamente dita. Tenho tempo para pensar, sobretudo.
No domingo, fomos ao posto do Songo. Almoçamos numa fazenda de café e passamos um dia formidável. Quando regressamos eram já 10h da noite. Deitamo-nos cedo e na 2ª feira fomos almoçar ao Negage, que é uma vila já bastante engraçada. Do Negage ao Alto-Caríale fui eu a guiar! Chegamos ao anoitecer e pronto! O Alto-Cariale nem sequer luz eléctrica possui!
Terça - feira foi dia de descanso. Aproveitei-o para…não fazer nada! Sim, compreendes o que quero dizer? – Não fazer nada nesta imensa paz de Angola é fazer tudo afinal! Ficar sentado à varanda, com um enorme silêncio sobre a terra e sentir tudo o que se sente nessas alturas. O Alto - Caríale não chega a ter uma dúzia de casas! Imaginas o que é uma terra assim? Sem dúvida, eu acredito que a solidão seja para essas pessoas um mal que as põe neurasténicas.
Mas, para mim, farto até aos olhos do movimento de Lisboa, nada mais agradável do que estar sozinho no meio do campo, olhando a vastidão dos horizontes, sentindo o ar puro, encantando-me com a tranquilidade e o silêncio que reinam. E, à noite, que dizer-te da escuridão, do silêncio, da paz que se sente e não se sabe contar?
Quinta feira, um grande dia! Fomos visitar as Quedas do Duque de Bragança, que ficam, ida e volta a 500km do Alto Caríale. Passámos um dia inteiro na viagem e lá nas quedas mas asseguro-te que nunca vi espectáculo tão imponente na minha vida. Maravilhoso! Não há nada no género em Angola, decerto, a não ser as do M’Bridge, mas essas se superiores em altura, não o são em imponência. As Quedas do Duque fazem uma pessoa sentir que o homem é mesquinho perante a natureza

Carmona 25de Julho de 1959

sábado, 5 de março de 2011

A História de Muculo Nambuco

Vou concorrer, - aos jogos florais da Sociedade Cultural de Angola - com um conto, que, inicialmente, tem o nome de “ A História de Muculo Nambuco.” De princípio, é a história de uma tribo antiga, do tempo dos reinados negros, e sobre a qual cai a desgraça. Então Muculo Nambuco, que é o príncipe do seu povo, é obrigado a sair do seu reino em busca de um mundo melhor. Em longes terras encontra outro povo, de raça diferente, o qual é governado por uma rainha. Decerto se hão-de casar mas Muculo Nambuco, que é “luíva”, há-de voltar à terra natal e deixa a rainha negra. Isto é um esboço muito rápido e sem que eu te possa dar a certeza de que a história vai ser mesmo assim Às vezes, de um momento para o outro, posso-lhe modificar a contextura. Já a comecei e vou reproduzir-te o pouco que já escrevi:

“ Viera de longe – das bandas em que as chanas e as anharas se dão as mãos de passo a passo e se espreguiçam infinito a dentro numa caminhada de que não logra topar o termo. Porque Muculo Nambuco é caçador de profissão. Botado terras em fora de cambulhada, correm luas sobre luas sem que alguém lhe ponha olho no corpo ou boca alviçareira se abra para lhe apontar o paradeiro. Na “banza” de Nha-Caritina, ao rés do rio, as mulheres cantam agora, no amanho das lavras, tristes melopeias de saudade pelos abraços fortes do negro caçador e os velhos da tribo arengam-lhe os feitos de andarilho dos grandes matos, quando a “mutopa”corre de boca em boca, nas longas noites tombadas sobre os “h’rimbos” dos luivas. Mas Muculo Nambuco tão cedo não há-de voltar. Junho cacimbeiro andava ainda espalhando as primeiras névoas pardas e já Nha-Caritina, rei da terra Luiva e dos negros dela, perdera a conta das pragas à socapa cuspinhadas contra Zambi-ià-Meia, o deus das águas. Nas palhotas do sobado, “tchinguilos” abertos para Nordeste, de onde sopram os ventos de Caçone, os velhos da tribo têm os olhos parados de tanto mirarem os longes sem viração da terra cansada. Campos além até tão longe quanto costumam ir os batedores luivas apanhar a caça fugida, um pesado silêncio se espicha sobre o mundo em que Nha-Caritina dita a sua lei de senhor dos povos. Os negros das chotas cravadas ao longo do Luíva, o grande rio de torrentes caudalosas que à raça dera o nome, já não sabem que mais caminhos palmilhar em busca de carne para o povo faminto. E os velhos conselheiros dos povoléus tão dextros na lenga-lenga das histórias da gente luíva, meneiam a cabeça de cansaço e perdem a memória na narração das luas passadas desde que o mau tempo da desgraça caiu de espicho sobre as planícies ermas e rasas. Nha- Caritina anda de cabeça tombada sobre o peito. Está mais velho que a podre “mulemba” erguida no centro do terreiro da sua “banza” e as pernas magras já não têm músculos para passarem além da última palhota do povoado”-
A descrição, como vês, não se pode comparar aos tempos de Sá da Bandeira…É provável que este conto deva ser o mais longo de quantos fiz até hoje, mas vou abalançar-me a produzir a primeira obra de… Fundo! Não achas que, para começo, já não vai mal?

Carmona 24 de Julho 1959

sexta-feira, 4 de março de 2011

"Os Meus Primeiros Passos"

Não te esqueças de emendar as inúmeras gralhas que o meu livro tem. Foi uma pena que eu cá não estivesse, pois orientando a elaboração, teria saído uma coisa muito mais apresentável. Eu volto a dizer o que sempre disse: ao reler todos estes contos não posso deixar de lhes encontrar, como única fundamental característica, a infantilidade. Por isso, nem de contos devem ser chamados. Eu cresci no espírito e, naturalmente esse crescimento havia de se reflectir infalivelmente na minha maneira de escrever.

Estou convidado para escrever para uma revista de Luanda, a “Cultura”, pertença da Sociedade Cultural de Angola.
É a única revista no género que Angola possui, mas é nova e ainda não alcançou grande repercussão. Isso pouco me importa. Sabes tu porque me fiz sócio da Sociedade e aceitei enviar colaboração? Porque é, praticamente, o berço da juventude, que um dia mais tarde se poderá intitular intelectual de Angola. É quase toda ela feita por rapazes novos e estou convicto de que se não morrer, estará ali o fulcro da geração Angolana. De tal maneira que um dos membros, um rapaz de cá com os seus 25 anos, foi preso pela Pide na véspera da minha partida… Já vez o que aquilo é. Por ora enviarei um trabalho que será apreciado por uma comissão. Mandam-me dizer, depois, se agrado ou não e, em caso afirmativo, fico a colaborar. Não se ganha nada mas não me importo.
A Metrópole marcou um passo decisivo e profundo na minha maneira de ser. É natural, portanto que a maneira de escrever sem deixar de ter o cunho eternamente próprio, também tivesse “crescido”. Sei bem quão longo é o caminho a percorrer. Hoje se eu escrevesse ainda como em Sá da Bandeira, decerto desistiria por constatar que não tinha futuro. Mas eu sei - eu sinto – que o meu estilo mudou e que caminha para o amadurecimento. É uma coisa que eu não sei explicar, mas que sinto. Este ano, apenas pretendo concorrer aos jogos florais da Sociedade Cultural de Angola. De antemão, não ganharei, decerto, pois a Sociedade, como já tive ocasião de te contar, é hoje o único alfobre de escritores existentes em Angola. Não vou portanto ter veleidades que não se coadunam com o meu feitio e só seriam de admitir se eu não soubesse o que valho por enquanto. Mas concorro para me treinar, para me obrigar a mim próprio, dado esse objectivo, a escrever.
Carmona 1959

Saudades do Avô (4)


2oo6 Anos do Avô

quinta-feira, 3 de março de 2011

Zeca Afonso Menino do Bairro Negro

SAUDADE

Meu gesto impreciso
é um esboço de viagem...

Cada folha da floresta
luz na saudade que tenho!
esta é uma Festa
com que os olhos entretenho.
Ai! Não me digam nada:
esta tarde traz a aragem
De outras terras de que venho...
Ai não me digam nada:
Deixem-me ganhar coragem
p'ra viver o que não tenho!
Neves e Sousa (Poeta Angolano)

Angola Setembro de1957

Terminei há três dias os meus exames de aptidão à Faculdade. Francamente, não me correram bem, e, como se tanto não bastasse, ainda li no jornal que o maior número de reprovações nos exames de admissão em Lisboa, se verifica precisamente em Direito. Tudo isto me atemoriza um pouco. Reprovar agora, depois de ter ficado com média 15 no 7º ano! Enfim, esperemos com calma e fé nos resultados que só devem sair lá para Outubro.
Sigo viagem no “Uíge” juntamente com a Maria Helena, e com mais malta de Sá da Bandeira e Luanda. Creio que partimos daqui no dia 25 do corrente, e, portanto estaremos em Lisboa na 1ª quinzena de Outubro. Que saudades eu já sinto. Creio que deixo em Angola todos os meus sonhos e esperanças de rapaz! Tenho a impressão de que me não adaptarei à vida social Lisboeta, o que me custa imenso, pois necessito, de qualquer modo, de vir a criar ambiente para o meu curso. Vai ser difícil! Em Direito, segundo informações que me têm dado, é necessário, sobretudo saber falar e escrever bem, e usar de diplomacia. E se à primeira condição eu posso dizer que estou apto a enfrentá-los, já o mesmo não acontece para a segunda, por causa deste meu feitio abrupto e demasiadamente sincero. Veremos, contudo, se eu consigo captar a excelsa simpatia da Faculdade de Direito não logo no 1º ano (se eu passar) mas lá para o 2º ou 3º, embora tal me custe.
Sabes bem o que são vésperas de partida e por aí deduzirás o estado, não só de espírito como de tempo em que te estou a escrever.

quarta-feira, 2 de março de 2011

O Silêncio do Mato

Parto amanhã para o Songo. Não vai ser longa a estadia. Na quinta - feira à noite já estou de volta. Vou para caçar, evidentemente! Sabes bem, que, eu sou um apaixonado pela natureza da minha terra e nada melhor do que a caça para nos pôr em contacto com ela e sentirmos bem fundo de nós, a maravilha da terra e dos seus elementos. Não é propriamente, melhor, especialmente, a caçada em si que me traz alegre: é sobretudo, poder estar só no meio do grande mato e sentir à minha volta tudo quanto conheço e mais querido me é: a terra desconhecida.

Como posso eu contar-te toda a satisfação que sinto por voltar a percorrer os matos da minha terra, voltar a sentir um enorme entrechoque de sensações dentro de mim, sei lá que amalgama de sentimentos! Sei que não posso descrever-te – era impossível! - o que eu sinto quando ando assim de noite a percorrer os campos, com a lua, as sombras, o enorme silêncio destas noites… meu Deus, há tanta coisa que se sente e não se sabe contar! Mas é isto, afinal, o que eu adoro em Angola e me prende irremediavelmente: a minha terra – a própria terra em si, com toda a beleza e majestade destes campos e matos, o silêncio das grandes noites, o luar, o canto das cigarras o mistério que em tudo paira. Isso sim, isso é Angola, isso é que eu amo. Isto faz parte de mim. Jamais poderei prescindir desta beleza sem enorme sacrifício. Sei lá quando poderei, de certeza, voltar a Angola e assistir de novo a todas estas coisas.
Mas esta caçada tem duas novidades: em primeiro lugar é de dia, a partir das quatro da madrugada (de quinta portanto) e, depois, garantiram-me, que encontraríamos caça grossa. Creio que é uma região em que ela abunda e por isso, desta vez, já não vou à aventura. Espero, portanto, encontrar caça e, se Deus quiser, poder filmá-la, o que seria interessantíssimo. Vamos em busca de pacaças e elefantes. Ocasiões destas há poucas.
Desta vez, se Deus quiser, a par das saudades que levar destas férias, levo também uma vontade grande de lutar e vencer a minha vida; mas não posso deixar de considerar Lisboa, hoje mais do que nunca, como uma situação transitória. E isso, claro, ainda me dará mais forças para regressar depressa.



Agosto 1959

terça-feira, 1 de março de 2011

Notícias de Carmona (Uíge)

Ao reencontrar-me com os cenários que eu sonhei ainda criança, não posso, afinal, deixar de sentir uma tristeza enorme pela quimera que eram os meus sonhos de então.
Carmona desiludiu-me.
É uma cidade inferior a qualquer das outras capitais de distrito que eu conheço. Evidentemente, tendo nascido ainda não há um dúzia de anos, a quando do surto do café, está adiantada; mas em comparação com as outras capitais de distrito – exceptuando Novo Redondo e Salazar – fica atrás delas. Aqui, em Carmona, leva-se uma vida social de luxo. As “altas individualidades”passam a tarde e a noite na piscina jogando a dinheiro e bebendo. O Governador é um major, bastante novo. Um autentico imberbe, sem envergadura para Governador.
Não sei como aguentaremos Angola com estes tipos à testa dos distritos. O Presidente da Câmara é irmão do Governador o chefe da PSP, o sobrinho.
Não, estas coisas não estão bem assim. Não me restam dúvidas de que tudo isto vai de mal a pior.
Tudo isto é uma grande aldrabice. Angola está a precisar de uma grande vassourada nos cargos mais altos.
Choca-me o estado de atraso em que vejo a minha terra.
Ouço os chefes falarem das dificuldades essenciais com que lutam os postos, das rebeliões dos nativos, da falta de gente branca e honesta, pois que a Metrópole o pouco que tem mandado é só do piorio. E revolto-me contra tudo isto. Passei por povoações onde não há nem luz eléctrica nem água. Vi garotos sujos chafurdando no chão; ouvi dizer que há dias em que falta água para beber e o único mantimento possível, são conservas em lata.
Tudo isto é um horror.
Há uma contradição paradoxal entre a terra, generosa, e nós os homens, que bem pouco estamos a fazer por ela.
E eu não sei conter-me. Não há sítio onde não chegue e tente logo inteirar-me das condições de vida; depois…nem queiras saber o que digo!
Pois não tenho razões para protestar?
Há por aqui, fazendas de café em milhares de hectares produtivos; essas fazendas estão adstritas a capitalistas metropolitanos que nunca cá vieram e só têm aqui os seus administradores ou gerentes. No fim do ano recebe-se a massa e pronto! Que interessa a eles fixarem-se à terra e progredirem? Bem lhes importa! Claro, como pagam as contribuições ao Estado, este também deixa estar tudo assim.
É uma miséria para uns, e uma riqueza para outros. Há ainda muita coisa a fazer. Muito mais do que até hoje fizemos, isto é se houver tempo para as fazermos…

Carmona ( Uíge) 19 de Julho 1959