quinta-feira, 20 de maio de 2010

Um Relógio Fechado no meu Coração

Deixamos hoje duas histórias escritas pelo João, 2º filho, na data do seu 42º aniversário. A primeira, por altura do seu 18º Aniversário, relembra-nos o LEGADO. A segunda, por altura do falecimento do nosso Pai, remete-nos para a SAUDADE.
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Querido PAI,
Pelo LEGADO, PAI, cheio de AUTENTICIDADE, recordo-te o dia do meu 18º aniversário. Era bem de manhã, eu ainda dormia. Entraste no meu quarto, acordaste-me e disseste-me, apenas e só: “Parabéns filho, por esta data tão importante. Infelizmente o PAI não vai poder estar contigo, porque vou viajar em trabalho (do que me recordo creio que iria para São Tomé e Príncipe). Mas o mais importante não é eu não poder estar, o mais importante é tu saberes que aquilo que mais desejo para ti é a tua felicidade. Não existe nada mais importante no Mundo do que ela, e por ela devemos lutar.” Deu-me um beijo e despediu-se. Não poderia ter desejado mais nem melhor. Obrigado, PAI.
Pela SAUDADE, PAI, imensa, deixo-te um texto que conta simplesmente uma história de amor e de amizade, baseada numa carta escrita em 14 de Abril de 2010, para a Sara, filha de uns amigos. Foi redigida, na altura, num pequeno livro de recordações, que também hoje lhe é oferecido como lembrança. A história conta-se assim:

"Um relógio fechado no meu coração"

- Sentimentos -

Sara, minha querida,
O meu PAI morreu. Quando soube o que tinha acontecido não queria acreditar. Não estava à espera, não estava preparado, foi tudo muito depressa. Soube pelo telefone, pela manhã. Deixei-me cair no chão, de joelhos, desamparado, e chorei. Chorei compulsivamente durante algum tempo. Parte importante do meu Mundo tinha acabado de ruir, parte importante de mim tinha acabado de morrer.
O primeiro sentimento que temos é de revolta, de raiva, de ódio. Contra tudo e contra todos, ou talvez, se calhar, contra ninguém. No caso do meu PAI só me conseguia lembrar daqueles que, não há muito tempo atrás, não o quiseram ouvir, não o quiseram escutar, nem sequer o tentaram fazer. Esses tristes infelizes, porque é de tristes e de infelizes de quem falamos, fizeram uso da mentira, da ignorância e da crítica, mas apenas demonstraram um desconhecimento cínico, simplesmente uma maldade atroz.
A raiva, a revolta e o ódio são passageiros, Sara, porque, claro, nós somos muito superiores a tudo isso. De facto, aqueles contra quem nos revoltamos são para nós completa e totalmente insignificantes!
Depois da raiva e da revolta vem a dor. E essa, Sara, é profunda e magoa, magoa bem fundo. Uma dor dilacerante, que pensamos nunca mais acabar. Pela primeira vez na vida começamos a sentir e a ter também a consciência, apesar de breve é certo, mas crua e dura, de que nunca mais vamos poder ver e estar com a pessoa querida e amiga que acabamos de perder. E no fim de tudo aparece este novo mas estranho sentimento, bastante ténue, como uma certeza. E este misto, de “certeza” e de “nunca mais” torna-se arrasador e demolidor!
A dor, essa, faz-nos chorar. Choramos, choramos, até que, por alguns instantes, as lágrimas secam. E, lentamente, em forma de anestesia, a dor dá lugar à tristeza. Num repente, sem darmos conta, a tristeza torna-se imensa e só a conseguimos suportar porque, afinal, ainda existem algumas pessoas que são, de verdade, muito nossas amigas.
Sim, Sara, amigos, amigos verdadeiros como tu. Dos que se preocupam connosco e que nos acodem nos momentos mais difíceis da nossa vida. E nessas alturas muito difíceis são os verdadeiros amigos que nos agarram, nos amparam e não nos deixam cair!
Não sei quanto tempo esta minha tristeza vai durar, porque ela é enorme, e ainda hoje a sinto como eterna. Provavelmente vai durar para sempre. Mas sabes, Sara, eu prefiro de longe a tristeza, à dor, à revolta e à raiva. A tristeza mantém-nos fiéis ao que somos, ao que sentimos, aos que amamos. A tristeza mantém-nos vivos e unidos, apesar de nos sentirmos inertes e adormecidos. A dor, a revolta e a raiva transfiguram-nos e não nos deixam ver ou ouvir, e muito menos nos deixam respirar ou viver.
A tristeza, essa, é também substituída, a espaços, tão fugazes quanto frequentes, pela saudade e pela serenidade. E então, nessas alturas, sentimos que somos pessoas bem diferentes, olhamos para as coisas de forma bem diferente. A saudade faz-nos recordar, a serenidade acalma-nos a alma, e é o tempo que nos vai mantendo vivos. Então, deixamo-nos estar ali, simplesmente, e muito lentamente, voltamos a sentir pequenos calafrios de felicidade e de liberdade, de novo.
- O Relógio -
No dia em que me despedi do meu PAI, na Igreja, a minha irmã Ana, a mais velha de nós, ofereceu ao meu PAI uma simples palavra, apenas e só uma simples palavra. A palavra que ela lhe ofereceu foi a palavra Mão. Aquilo que o meu PAI mais gostava de fazer era certamente escrever e, com a simples ajuda da palavra Mão, a Mão que a minha irmã lhe ofereceu, para sempre, em forma de palavra, o meu PAI, onde quer que esteja e sempre que o queira, vai poder continuar a escrever!
Nessa mesma altura a minha irmã convidou todas as pessoas, as que quisessem, a entregar ao meu PAI uma palavra, qualquer que fosse, para que ele as levasse com ele para todo o sempre.
Eu, Sara, ofereci-lhe a palavra Relógio. Um Relógio do Tempo, que parou no Tempo, e que também em tempos já muito idos, me foi oferecido pela minha avó Sérgia, a mãe do meu PAI, e que pertencia ao meu avô António, o PAI do meu PAI. Desde essa altura, Sara, o Relógio tem estado sempre parado. Ficou parado no Tempo. E eu nunca tive vontade de o pôr a funcionar, apesar de o ter tentado algumas vezes. Nessa altura acho que me faltou coragem, não sei bem porquê…
Hoje tenho a certeza que esse Relógio encerra todo o tempo do Mundo em que estivemos os dois juntos, eu e o meu PAI. Esse Relógio, Sara, está hoje bem guardado e fechado, no coração do meu PAI, ao pé da Mão que a minha irmã lhe ofereceu, em forma de Palavra. Como ela diz, a Mão com que sempre nos acarinhou, a Mão com que sempre nos segurou, a Mão com que sempre nos empurrou, na vida e pela vida. A Mão com que ele nos guarda, hoje, eternamente, para todo o sempre.
A coragem que a mim sempre me faltou para por o Relógio a andar, percebo agora, esconde o receio que temos de perder para sempre os que mais amamos. Queremos tanto preservar o que achamos ser eterno que simplesmente esperamos que o tempo não passe. Nesse dia, quando percebi que tinha perdido o meu PAI, senti que tinha chegado o momento. O momento de, afinal, não deixar parar o tempo. O momento de, finalmente, tentar pôr o Relógio a trabalhar. Quando o coloquei, junto do coração, a Mão da minha irmã, felizmente, fez o resto, e o Relógio voltou a funcionar, de novo.
Assim, sempre que um de nós quiser ouvir, ver, sentir ou simplesmente estar com o outro, é preciso, apenas e só, escutar o coração, abrir o Relógio, pegar na Mão e andar para trás no tempo. Com o Relógio, agora a trabalhar eternamente, podemos recordar, sempre e para sempre, todos os momentos em que estivemos juntos, os dois, eu e o meu PAI.
- A amizade -
Nesse dia, Sara, e já depois de lhe ter oferecido o Relógio, a tristeza e a saudade tornaram-se incrivelmente serenas. Serenas porque tive sempre ao meu lado algumas pessoas que hoje considero serem verdadeiramente minhas amigas. Os verdadeiros amigos, aqueles que nas horas mais difíceis dizem sempre "presente". Aqueles que nas horas mais difíceis estão sempre connosco, mesmo quando estão longe. Aqueles que ouvem o que dizemos, sempre, e nos aceitam simplesmente como somos e pelo que somos. Aqueles que choram connosco quando nós precisamos de chorar. Aqueles que também sofrem quando também nós sofremos. Aqueles que, muitas vezes, só pelo simples olhar, sabem o que estamos a sentir e sabem bem o que nos faz falta. Aqueles que nos fazem ver o que é de facto importante.
Um desses amigos, minha querida Sara, verdadeiros, é o teu PAI. O meu PAI era um Homem Extraordinário, com qualidades inigualáveis. Tinha uma sensibilidade extrema, uma força interior inesgotável, uma ternura e um carinho infindáveis, sempre muito presentes. Era muito humano, sério, sincero, justo, frontal, honesto, convicto, responsável, mas também intransigente, rígido, firme e rigoroso. É certo e seguro que não conheço o teu PAI assim há tanto tempo, é verdade. Mas se o tempo não é por si mensurável, os sentimentos são-no. E esses moldam a amizade, criam laços inquebráveis, fortalecem-nos como pessoas, fazem-nos crescer como Homens, ajudam-nos a lutar pela liberdade e pela felicidade. Hoje, a estima que tenho pelo teu Pai é grande, e quero dizer-te que reconheço nele algumas das atitudes e valores que, a espaços, me fazem lembrar o meu PAI. Por tudo isto, Sara, quero que saibas que o teu PAI é também um Homem Formidável. E porque nos dias que correm, estas características e qualidades são tão especiais que só estão ao alcance dos grandes Homens, é imperioso saberes que tal é uma raridade, e o que é raro deve ser preservado e acarinhado.
- A Felicidade e a Liberdade -
Com o meu PAI aprendi que é a procura constante da felicidade que nos torna verdadeiramente livres. E pela Liberdade e pela Felicidade devemos lutar, sempre, até ao fim, como ele fez! Não só por nós e pelos que mais amamos. Mas também por todos os outros, sem excepção, porque também neles devemos acreditar, sempre, em prol de um Mundo bem melhor.
Por isso, minha querida Sara, mima o teu PAI sempre que puderes. Brinca com ele, sempre, sempre, sempre. Conta-lhe histórias, fala-lhe das tuas alegrias, mas também das tuas tristezas. E ri-te, diverte-te e sê feliz. E, sempre que puderes, luta pela Liberdade e pela Felicidade.
Eu, Sara, vou continuar a fazer tudo isto com o meu PAI. Para que possa continuar a amar e a acreditar. Para que possa perseguir e prosseguir tudo aquilo que ele é. Para que possa continuar a ser Livre e Feliz. Para isso fecho os olhos e tiro do meu coração o Relógio, fechado, que em tempos atrás esteve parado no tempo, apenas com receio de o perder.
Esta história, Sara, é uma pequena mas simples história de amor e de amizade, e que fica escrita no livro de memórias que hoje te ofereço. Foi escrita, claro, já com a ajuda da MÃO do meu PAI, numa altura em que a raiva, a revolta e a dor deram finalmente lugar à tristeza, à saudade e à serenidade. Numa altura em que o Relógio do Tempo voltou de novo a trabalhar.
E, para que tu possas recordar também, mais tarde, os melhores momentos da tua vida, repletos de Felicidade e Liberdade, passados com o teu PAI, utiliza este pequeno livro de memórias. Nele escreve tudo aquilo que quiseres, as alegrias, os desgostos, as amizades, os sentimentos. Nessas alturas não te esqueças, Nunca, que o teu PAI estará lá, para ti, por ti. E quando precisares pede ao teu PAI a Mão dele, que seguramente ela te ajudará, SEMPRE! Exactamente como também a Mão do meu PAI me ajudou, SEMPRE, quando eu dela precisei!
Beijos do teu grande amigo,

João