Arrumamos papéis, lentamente, com profunda saudade. O nosso neto, Henrique (15 anos), encontrou na secretária do Avô, um esboço, um rascunho, um desabafo feito ao correr da pena.
Terminava o ano de 1999.
Vamos ler “O Ouvidor do Kimbo”
O FIM DO IMPÉRIO
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Quando eu nasci, nos idos de 40 – exactamente em 3 de Agosto de 1940 – ensinavam aos portugueses do Ultramar que Portugal ia do Minho a Timor. Não estou certo de que todos os portugueses do Ultramar percebessem bem. Suspeito que deviam entender que Portugal se dizia Portugal no território ultramarino em que tinham nascido ou vivido. E foi assim que os meus Pais me ensinaram – tu és português, porque nasceste em Angola, de pais portugueses, e Portugal vai do Minho a Timor. Como era “puto”, aceitei. Percebi que havia um Portugal lá na Europa, mas não entendi mais nada, quer dizer, não souberam explicar-me que havia Moçambique, ou Timor, ou Cabo-Verde, ou a Guiné-Bissau. Quanto a Goa, Damão e Diu, isso parecia ser já um caso esquecido. E São João Baptista de Ajudá não existia – poderia ser um museu que, em parceria, nós reclamássemos como o Senegal.
Também é verdade que, naqueles tempos, os portugueses não pensavam perder o império. A guerra alastrava pela Europa, norte de África, a Ásia – mas, quanto a Angola, não caíam bombas, não havia invasões. Portugal era neutro.
Devo a isso o ter crescido em paz. Lá, nos confins de Angola, nos Luchazes para onde fui levado depois de nascer, o mundo era outro. Havia dois casais brancos – um dos casais era o homem e a mulher que eram meus pais, o outro serviu de padrinhos de acompanhamento. No resto, eu não tinha brancos: tinha os meninos negros com quem brincava, os meus irmãos do dia a dia.
Com os meus irmãos negros do dia a dia, eu fui fazendo-me menino: ensinavam-me a sair do terraço da casa de meus pais para disparar pelo campo fora, para entrar no galinheiro, para trepar às árvores, para caçar pássaros com fisga, para me banhar nos riachos que povoavam os Luchazes. E aprendi com eles a usar a fisga, a atirar as pedras aos camaleões, a montar os porcos e a perseguir as galinhas da capoeira de minha Mãe – o sustentáculo dos brancos – num nascer para a vida feito de cheiros, de comeres, de suores diferentes e de um horizonte que a memória velha não perde: esse horizonte sem fim de Angola.
Tenho a ideia de que os meus irmãos que eram meninos negros regressavam, ao fim da tarde, às suas sanzalas – às suas casas. Eu não sabia como eram. Soube depois: cubatas de capim, eles dormiam numa esteira sobre o chão, comiam um pedaço de “funge” e o lume crepitava, magriço, até se extinguir na noite e a lua vir ocupar o espaço todo. A essa hora, jantado com sopa de legumes da horta de minha Mãe, era mandado dormir. Não havia, claro, televisão, o rádio era uma voz roufenha e ocasional que meu Pai conseguia captar nas ondas. De modo que só me lembro do silêncio: era um silêncio longo, repleto de barulhos. O barulho dos pássaros que regressavam aos ninhos. O barulho das cobras que rastejavam para as tocas. O barulho das galinhas, dos porcos, das cabras e das vacas que se enfileiravam nos quartos dos currais. O barulho também das galinhas do mato, indisciplinadas, tontas; e o regresso digno, altivo, dos flamingos coloridos, passo a passo.
Quando tudo isso tinha acabado, vinha o silêncio. Vinha? Não. Na minha cama, com a janela aberta sobre a terra, via a lua romper e com ela outros barulhos e cheiros da terra de Angola: as hienas gargarejavam metros além, os pirilampos prenunciavam a dança dos computadores futuros, os sapos ronquejavam como se não fumassem, as corujas pipiavam para nos fazer medo.
Encolhido nos cobertores da minha cama, via e ouvia. Portugal dava-me paz, Angola dava-me vida. E foi assim que o Império me fez crescer.
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Comecei a crescer, mais tarde com rebuço no lábio superior e pelitos em baixo: em Sá da Bandeira, no Lubango. Aí já tinha passado para o Liceu – ou seja, o secundário. O mundo mudara: Portugal era colonialista e Angola tinha de ser independente. Que meus Pais, os pais de outros e outros ainda, fossem portugueses – nada a opôr. Mas que não se atrevessem a fazer obstáculo àquilo que, para mim era evidente – Angola independente, com negros, brancos, mestiços, católicos, protestantes, animistas. Poderíamos negociar uma Comunidade de Povos Portugueses – isso era questão para se ir vendo.
Envolvi-me nessa independência de Angola. Estudei, reflecti, fiz parte de grupos, declarei que as coisas não podiam continuar assim (mas não embarquei nas lutas de libertação, pela simples razão de que não percebi de quem se tratava de libertar – havia de libertar-se os povos negros, evidentemente, mas também os homens de cor não negra que pertenciam à sua terra. E, sobretudo, se era questão de liberdade, jamais se poderia colocar como se colocava, o problema em termos de comunismo versus capitalismo).
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Na luta de libertação dos povos de Angola e de outras ex-colónias, eu não estive. Eles estavam errados. Não era uma luta de brancos contra pretos. O que eu queria era uma luta de povos – que interessava a cor, a religião, os costumes? – não contra o povo português, mas sim, em comunhão com este, em qualquer fórmula que nos permitisse viver em comunidade.
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Em Portugal, ninguém percebeu isto. Em Portugal, ouvi reclamar “não mais um soldado para as colónias”. Não precisávamos de soldados nas colónias. Precisávamos de estadistas.
Nas colónias obviamente, ouvimos dizer “libertação nacional”. A enxurrada da desgraça mútua estava aberta.
Olhei para tudo isso. Apeteceu-me chorar: porque não devia ser assim. Devíamos ter reconhecido a independência com dignidade mútua. Receio muito que, hoje, constatemos que não houve dignidade de parte a parte. O que não significa que não devesse haver independência. Significa, só, que não soubemos assumi-la com amor e verticalidade.
Nós perdemos. Não teria muito interesse se, também eles, não tivessem perdido algo.
Nós perdemos. Não teria muito interesse se, também eles, não tivessem perdido algo.
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E perderam?
Acho que sim. Perderam algo que outro povo não dá: a sua própria identidade, os seus sentimentos, o seu próprio código genético!!
Para que serve a um angolano, moçambicano, guineense e outros esse pretenso código genético?
Para nada. O que eles precisam é de ajudas externas, contribuições financeiras, investimentos. Portugal dá pouco, praticamente nada. Outros dão muito.
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No dia em que os povos de língua portuguesa perceberem o que os portugueses dão, pode ser tarde. Neste mundo de globalização, de intermediação de mercados, de fronteiras abertas de comunicação, o que pode restar? Os homens.
Muitos portugueses, neste contexto, só querem saber da Europa. A culpa é deles? É deles, sim, mas também dos povos com que os portugueses irmanaram.
Uns e outros temos um desafio: não esquecer a história, perdoar os erros, construir um futuro comum, ao lado de outros futuros comuns.
Quando nos levam a pensar que o dinheiro é mais importante do que o amor, tudo está perdido.
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A comunidade com que sonhei em Angola não é mais possível. Mas talvez seja possível registar que, hoje, às 4 horas de Portugal e às 24 horas de Macau, deixámos o Império com tranquilidade e dignidade.
Talvez seja possível sonhar que, amanhã, em Timor, as Nações Unidas transmitirão a bandeira para a de Timor.
E que, num gesto de fim do Império – esse, sim, o fim do Império – Xanana Gusmão, em simbolismo, faça arrear a bandeira portuguesa e subir a de Timor.
Então, sim, Xanana Gusmão ter-nos-á dado o fim do Império: a paz connosco, os portugueses, e a paz com os povos com que nos cruzámos.
No direito internacional, e na diplomacia, isto é impossível: para mim, filho de colono português, esse momento seria o do reencontro: o da mistura do amor e do sol do ocidente e do oriente, sobre o mar e sob o céu, que os meus pais, colonos, me ensinaram que eram pertença dos homens de todo o mundo.