quarta-feira, 28 de julho de 2010

O blogue

O processo de adopção do blogue foi longo, doloroso, e difícil.
Disse o Henrique:
« Pretende ser um blogue de memórias e de saudades, de poesia, de estórias e comentários políticos. Será também uma forma de deixar aos meus treze netos um rasto meu, porque, pela ordem natural das coisas, sobretudo os mais pequenos é provável que dele nada retenham.»
Adoptar o blogue foi uma necessidade imperiosa. Era o Henrique presente nas suas palavras. Mas como utilizar as memórias, as saudades, a poesia as estórias de alguém que partiu sem avisar? Deixou-as escritas, é certo. Mas não traziam instruções.
O Henrique é hoje, nas páginas deste blogue, o menino do quimbo, o líder do liceu, o brilhante adolescente que escrevia contos, reportagens, fazia discursos e dizia dele próprio:
«Sei perfeitamente que não fui destinado a aumentar a legião dos que andam na vida por andar… Que Deus me ajude e me torne no Homem que sei que sou capaz de ser. Lutarei com o fito ardente e elevado de ser alguém prestável à Humanidade e à sua terra»
É também o Homem que tem África no coração, que se revela, se abre, se torna transparente.
A Liberdade era para o Henrique um bem essencial! Escreveu certo dia:
« Eu quero chegar à janela, ver um saguão, e, para além do saguão, ver a vida viva».
Mas adoptamos o blogue. Assumimos uma responsabilidade partilhada em família.
Se estão lembrados, a nossa filha Ana lançou um repto: «A todos que o conheceram e se houver palavras que queiram entregar-lhe, façam-no e a sua escrita enriquecerá».
Como as estórias, as memórias, as saudades e as poesias são feitas por pessoas e com pessoas, o repto lança-se de novo: este blogue foi adoptado até aqui pela família. As lembranças dos amigos só enriquecerão a sua escrita.

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terça-feira, 27 de julho de 2010

BALUBA

Baluba, a flor gentil da sua raça,
A donairosa dos quadris coleantes,
Dos finos tornozelos de gazela,
Dos seios nus, de perturbante graça,
A que era negra e ardentemente bela,
E que cheirava a ervas odorantes
Da selva tropical
Do seu país natal;

Baluba, a que trazia em seu olhar
Nostálgicos acenos sensuais,
E a tentação de incógnito feitiço;
A que ia o corpo de ébano banhar
Num rio azul, por entre matagais,
E ficava depois, de olhar mortiço,
Mirando-se, enamorada,
Nas águas retratada…

Baluba, a flor das águas sempre absorta
Na ingénua sedução da sua imagem;
Levou-a um jacaré num trago hiante,
Traçando um rasto longo, em tom vermelho,
De sangue rubro, em cristalino espelho.
- Mas diz a lenda que a Baluba morta deixou
no rio azul essa miragem do seu corpo ao luar,
sempre ondulante,
Qual flor negra de veludo,
Num encantamento mudo…

E a rapariga que não é bonita,
Irmã da sua raça,
Vai-se banhar no rio onde dormita
A flor de estranha graça…
E a Baluba, embalada p’las estrelas,
A todas faz ardentemente belas!

(Poesia de J. Galvão Balsa, in “Oiro e Cinza do Sertão)




( Mulher BALUBA Neves e Sousa)


sexta-feira, 23 de julho de 2010

Sá da Bandeira, Lubango


O Liceu Nacional de Diogo Cão de Sá da Bandeira, orgulhava-se de ser em termos de praxe académica, a Coimbra de Angola. Privilegiava, por isso, o uso da capa e batina, e a organização dos estudantes em repúblicas.
O grupo etário dos alunos do Liceu era, no entanto, bem diferente do grupo etário dos estudantes de Coimbra.
Tudo isto para vos dizer que, nesta linha de actuação, a 13 de Setembro de 1956 quatro jovens de 16 anos, fundaram a República Académica e Cultural «Os 4 Marabuntas».
Constituída por um presidente eleito e um governo de três elementos, tinha, como era da praxe, uma Madrinha e sócios honorários.
Como já todos percebemos o presidente era o nosso Ouvidor do Kimbo.
A 13 de Março escrevia o Henrique no livro de Actas:
Comemora a nossa republica meio ano de uma existência pacifica e laboriosa, progressiva e constante.
Prestar, neste momento delicado, uma homenagem recolhida e simples, aos meus colegas de republica, não será mais do que passar para o papel uma obrigação que a boca não consegue calar - porque, se na realidade, eu tenho feito «alguma coisa» pela nossa republica, essa alguma coisa reduzir-se-ia a nada se não fosse a compreensão tão dedicada dos membros do governo, companheiros ideais, sempre presentes nas boas e nas más horas, na tormenta ou na bonança.
Mal me ficaria, portanto, não colaborar nestas páginas, modestamente dedicadas ao semi-aniversário que hoje decorre.
Depara-se-me, no entanto, o difícil problema do assunto a glosar, já que os meus nobres colegas debateram os assuntos capitais. E só encontro uma escapatória para o obstáculo: recordarmos nesta ocasião, o nome sagrado e imortal da terra que me viu nascer e crescer, chorar e rir, gozar e trabalhar.
Que me possam perdoar os que em Angola não nasceram, mas, para um natural desta terra, exarar num livro, como este, um nome como o daquela… é dizer o que, de mais sublime o coração contem
!!!

Foi assim que nasceu « Deusa Angola» que editamos anteriormente.

segunda-feira, 19 de julho de 2010

DEUSA ANGOLA

Surge-me, recostada em figura de poetisa e cavaleira errante, trajada de coqueiros de verde garrido, a deusa estranha e misteriosa do amor e da aventura: ANGOLA, berço rendado de mártires-santos e heróis –guerreiros, solar ancestral de monges celibatários, fecunda universidade de jograis e academia sem rival de musas e liras, trovas e poemas de ilusão!
Ostenta, por diadema refulgente, da sua coroa o braço luzidio do negro escravo, que no campo arrasta ainda a corrente da grilheta, ao som do soar lamentoso da sua renuncia de sujeição… E a boca sensual da minha deusa, curvilíneamente arredondada por dois grossos lábios de um Morro Maluco, entoa também, no silêncio sepulcral de uma noite luarenta, o cântico triste e dolente da magia do seu batuque…
Já os olhos negros e profundos, que no Zaire e no Zambeze beberam as lágrimas doloridas da saudade, se semi-encerram, sonolentamente, ao devassarem o emaranhado agreste do Maiconde colorido; e nas pérolas transparentes, que deslizam das pálpebras lacrimosas, lêem-se promessas sem fim de lendas e fantasias, prisioneiras nos areais longínquos da Baía dos Tigres!
No colo macio da sua pele morena, refulge um rico colar de diamantes que a Lunda desentranhou; e nos dedos esguios e sedosos dessa deusa do Poente, há anéis congoleses de café torrado, missangas de Massango, feijão e milho, conchas esmeraltinas e búzios do atlântico enamorado !
Calai-vos que a rainha dorme! O leito repousante é o capim seco e rastejante das anharas infindáveis do Moxico, e para abanar-lhe o rosto da cor do negro ébano batem palmas as palmas das palmeiras, padrões solitários erguidos na faixa lambida da ilha de Luanda! Ao lado, incolor bebida do esquecimento, entorna-se uma cabaça por sobre a esteira de palha piolhenta; e na mão comprida e acetinada, a deusa Angola empunha o ceptro arrebatado, em sangue e choro, nas praças empedradas da Muxima e Massangano! Os pés, escondidos nas cavernas de um Jau do sul, envolvem-se em peles sarapintadas de onças e surucucus, pendendo, preguiçosamente, sobre as trombas gigantescas de dois elefantes do Cunene aguado!
A chama fumarenta da carapinha de lianas e mutalas – toucada, graciosamente, no largo almofadão de uma Jinga derrotada- deita-se em penas de avestruz de Moçâmedes e dos Bundas, enquanto as longas pernas de feiticeira desconhecida se moldam desejosamente, sob a tanga acinzentada do nevoeiro de uma Chela altiva! E ao pé dos dedos, tilintando em acordes de oboés, há argolas e correias gentílicas que o Bié de Silva-Porto ofereceu em homenagem à soberana da sua embala empalhotada!
E a deusa dorme!...Em seu sono de tradição, há lendas de caravelas arrojadas, que grandes mares tornaram num só único, contos de sobas e régulos traiçoeiros, epopeias de amargura e de bravura, escritas pela ponta de uma espada de lamina tinta; e nas pestanas de cílios amorosos, existe um livro de sonetos e poemas, baladas pungentes de histórias que não morrem, esperanças de um D. Sebastião que há-de chegar num dia de sol radioso, para a erguer do seu leito adormecido!... e na sua sonolência preguiçosa, a deusa Angola chama baixinho pelo cavaleiro andante dos seus sonhos, de elmo rebrilhante e armadura refulgente, que no dia da Ressurreição a levará, trajada de branco noivado, ao altar erguido nos pináculos da Glória!!!
Dorme e sonha Deusa Angola! Sonha e dorme que eu vigio o teu turpor de letargo hibernal! Terás a teu lado, eternamente, chorando quando tu choras, gargalhando quando ris, a sentinela vigilante do coração pequeno de um angolano!
E àqueles que passarem, troçando, e perguntarem pela minha vigília de sempre eu responderei ao grito, com o bramido: «Sentinela, Alerta Está»!!!

Lubango, Sá da Bandeira, 13 de Março 1957

sábado, 17 de julho de 2010

UM BLOGUE QUE DÁ VIDA

Dou por mim a pensar no absoluto mistério que é a história deste blog.
Um pai (o meu), para quem a informática foi quase toda a vida um «extraterrestre», mas que no último ano de vida decide criar um blog – este blog – e nele contar-se e dar-se….
Um blog que, num ápice, lhe devolve a motivação, a alegria, a força, lhe enche as horas e os dias de entretenimento fértil…
Um blog que o mantém ligado a si, aos outros, ligado à vida…
Um blog que, no último ano de vida lhe deu tanta vida!...
Um blog que, sem aviso, está mesmo ali à mão, em silêncio, nas horas que se seguiram à sua morte física, pronto a lembrar-nos o Pai e a ser instrumento para o Pai ser lembrado.
Um blog pronto a ser adoptado.
É verdade que me inquieto à procura de coisas que me lembrem o Pai.
Suponho que seja assim para todos os que perdem o seu.
Procuro-o dentro e fora de mim, em tudo o que possa lembrar-mo e trazer-mo.
Quem não quer manter vivo um Pai que não resistiu à morte física do seu corpo?
Quem não quer nunca esquecer? E no entanto, como fazê-lo?…
E é aí que dou por mim a pensar no absoluto mistério que é a história deste blog.
Ontem, deu-lhe vida; hoje, continua a dar-lhe vida e a dar-nos a vida dele.
É nele que perseguimos um sonho do Pai.
É nele que mantemos vivo o seu espírito.
O espírito de Deus sopra onde quer e como quer.
Estou convencida que sopra neste blog.
Sofia

quinta-feira, 15 de julho de 2010

Conferência Internacional do Trabalho 1992


Conferência Internacional do Trabalho 1992
Quando sai do M.T. em 1981 é eleito Vice Presidente da Comissão Politica do P.S.D., e nomeado representante do Governo Português junto da O.I.T.
A 8 de Julho de 1988, dizia O Jornal, « parece mover-se sempre mais à vontade ao seu nível de competência profissional, em Genebra, na Guiné Bissau ou em S. Tomé, do que no meio da trica politica Lisboeta».
Em Junho de 1992 é eleito presidente da 79ª Sessão da Conferência Internacional do Trabalho.
Na fotografia vemo-lo na condução dos trabalhos, durante o discurso do convidado de honra da Sessão, o Presidente Chiluba então Presidente da Zâmbia

quarta-feira, 14 de julho de 2010

Febre Solar

O grande sol das calmas dardejantes,
Sol africano de horas esbraseadas,
Inquieta-me as pupilas incendiadas,
Sobressalta-me as veias latejantes…

O grande sol de flechas causticantes,
Que faz gritar as pedras calcinadas,
Põe-me na alma visões alucinadas,
Põe-me na carne crispações vibrantes.

E eu sinto-me um guerreiro primitivo,
Mártir obscuro dum calvário vivo,
Gozando a dor dum estranho frenesim…

E é tanta a luz em toda a Natureza
Que eu sinto o sol em sonhos de grandeza
A rir!...cantar!...gritar!...dentro de mim!
(Poesia de J. Galvão Balsa, in “Oiro e Cinza do Sertão”)

segunda-feira, 12 de julho de 2010

VII Governo Constitucional


O VII Governo constitucional toma posse a 9 de Janeiro de 1981.

É constituído por uma coligação de três partidos: P.S.D. , C.D.S. e PPM.
Termina o seu mandato a 4 de Setembro de 1981, em plena crise, económica, politica e social.
Diz nessa data O Jornal- «Pela primeira vez, um ministro do Trabalho abandona a Praça de Londres com mais prestígio do que aquele com que entrara. Não por obra feita- mas pelo que se recusou a fazer.»
Numa carta datada de 21 de Agosto de 1981, e dirigida ao Senhor Primeiro Ministro Dr. Pinto Balsemão, o nosso Pai coloca a questão de ser dispensado da chefia do Ministério do Trabalho, nos seguintes termos: « os homens devem ser escolhidos em função das politicas a prosseguir,(……….) e não vislumbro que possa ser eu, (………. )um homem adepto do dialogo e dos processos lentos e difíceis, de sedimentação de consensos sociais tácitos ou expressos,(…….) a pessoa mais indicada para continuar à frente do Ministério do Trabalho, no contexto dos objectivos pelos quais o seu novo Governo tem que lutar no próximo, senão mesmo nos próximos anos, atento à durabilidade da crise».
A coerência de pensamento, a firmeza de atitudes demonstrada, foram uma constante na sua vida politica. No dia em que passam três meses da sua morte deixamos este testemunho para que seja lembrado e, porque não, seguido pelos que hoje têm a difícil e ingrata tarefa de dirigir os destinos da Nação.

terça-feira, 6 de julho de 2010

Homenagem Sindical

A 10 de Julho de 1998 o Secretariado Executivo do Sindicato da Agricultura, Alimentação e Florestas, organizou uma sessão comemorativa do seu 1º centenário.

Na sessão solene o nosso Pai foi homenageado pelo sindicato na sua qualidade de ex -ministro do Trabalho.

Fotografia publicada no número 15, Ano V, (Julho/Agosto) 1998, Jornal do SETAA.

sábado, 3 de julho de 2010

A Bailarina

«A Bailarina foi publicada, sob pseudónimo no Jornal A Huila (Lubango antiga Sá da Bandeira) 1956? 1957?
Também para o Henrique, no inicio de um projecto surgia um período de incerteza - será que vou ser capaz? Dúvida fugaz, transitória. No horizonte - a tarefa que se desenhava, a concretização da utopia sonhada, a entrega total. Como a bailarina."

A Bailarina

Em poética silhueta do poente, ela entra no palco desconhecido, pisando de mansinho o tablado, enquanto, a medo, a esbelta figura se requebra em passos de harmonia.
Ofuscada pela luz de focos encerrados em câmara escura, a bailarina ergue-se na ponta dos pés pequeninos, e calca o chão em rodopio delicado e saltitante, airosamente recortada, na trágica alegria do momento, pela veste de tule branco, debruado a lantejoulas.
Receosa, o busto arfando em palpitação subtil, ela olha o público mordaz que a fixa em silêncio reprovador de juiz; e os pés, atropelam-se grotescamente em precipitação atabalhoada, que arranca murmúrios abafados de pateada.
Desdobrado, sobreposto em « onduleio» de serra, o divinal corpo de mulher agacha-se lentamente, até beijar o soalho iluminado da ribalta silenciosa. E a bailarina chora…Estática, braços rígidos, sem o calor da excitação, sente as lágrimas borrarem-lhe o traço preto da maquilhagem…Olhos sem vida na plateia de cabeças poisadas com apatia, ouve a suave sinfonia do ballet tocado por figuras de traje negro, que lhe lembram espectros ridículos em desafinamento. Envergonhada, precoce timidez reflectida no peito receoso, agarra nervosamente o modesto crucifixo de ferro e os lábios sussurram uma oração que há muito ela houvera desprezado: «Ave-Maria, cheia de graça»…
E as ondas dos projectores varrem em turbilhão o palco longínquo, cenário irreal de pureza, onde cresce o feto da inocência de um mundo diferente, paraíso da música que ela quer dançar. Livram-se os pés da imagem da emoção, cavalgam em marcha sem horizontes, descontraídos e indomáveis no rodopio desvairado do espectáculo. E a bailarina baila…
Estranha deusa nimbada pela louca alucinação dos acordes, os braços voam em contorções orientais, meneiam-se e afagam suplicas, acariciam o rosto de alguém que já não volta, saracoteiam-se em traços vincados de fascinação; e arfando em viravoltas desprendidas, a bailarina corre o estrado de ponta a ponta, desenhando na maneira empoeirada dos bastidores, exóticas figuras para o desconhecido, que só ela entende no grácil delinear do seu vestido.
E para ela não há terra nem céus, nem cor e luz, nem recordações de um vulto de homem que não esquece: só se avoluma o ritmo inconsciente do fascínio, que fica a perdurar no mavioso bater das notas do piano, enquanto braços, pernas, e a sombra do próprio corpo, arrancam o véu tirano de destino para dançarem até ao fim…
Incendiada no fogo vivo da sua musica, o corpo cansado contorce-se dolorosamente no último suspiro do ballet. E na reverência sonolenta do acabar, a bailarina ajoelha, comovida.
Em vagalhão clamoroso, a plateia aplaude de pé, freneticamente... E na ribalta, atapetada por flores brancas de ventura, jazem, da endiabrada bailarina, as duas sapatilhas de veludo.

quinta-feira, 1 de julho de 2010

O IMBONDEIRO

Em 1959, o Henrique reúne, num pequeno volume intitulado «Os Meus Primeiros Passos», contos, ensaios, reportagens e discursos já anteriormente publicados ou no jornal A Huíla, no Lubango, ou no Diário Popular em Lisboa, num período que vai de fins de 56 a fins de 58.
Editámos já no Ouvidor do Kimbo o discurso proferido a 10 de Junho de1957.
Com o Imbondeiro começaremos uma série de contos.
Curioso como, não sendo um conto autobiográfico, o Henrique se confunde, se identifica, se solidariza com o «Quasímodo» e se torna seu amigo na desgraça e na solidão.


«IMBONDEIRO»

«Ele é o único senhor e rei da vastidão incomensurável da «chana» sem «capim». Por ali vive só, acabrunhado e solitário mendigo, abarcando, com um olhar de desolação, o horizonte sem fim dos seus domínios.
Não tem amigos nem irmãos! Pobre que ao mundo veio num dia de triste sina, aziago como feitiço, não quiseram os fados embutir-lhe no tronco descaído uma pequenina parcela de alma sentimental. Por isso dizem, é bruto, malcriado e estúpido!
Mas ele sofre coitado! Nos braços rugosos e carcomidos pelo tempo, mostra, altivo e arrogante, as feridas e chagas das contendas e das batalhas.
Outrora, quisera também ser igual a tantos outros, que sentiam a seiva quente a latejar nos ramos farfalhudos… E lutara com denodo e energia. Endireitara o busto vaidosamente, lançando as hastes por cima da ramagem virgem, e clamara bem alto: Eu quero …eu quero!... Num eco a voz galgou montes e valados, levando para longe o grito desesperado do rebelde.
Os outros miraram-no com compaixão e tristeza, fitaram com nojo o seu porte grotesco de Quasímodo, e viraram-lhe as costas, como se repulsa lhes provocasse o pobre imbondeiro sem família.
A princípio, na brutalidade crassa que o distingue, não alcançou a ofensa de que fora o alvo tentador…. E continuou a gritar com fúria arrebatada, num desejo incompreensível de lutar e vencer, apontando com os dedos descarnados, a tentação mirabolante que o seduzia “ Eu quero… eu quero!...
Entorpecera-se-lhe o cérebro de ideias loucas e extravagantes. O crepúsculo esbatia-se em pinceladas suaves, tingindo a terra de uma aguarela avermelhada, enquanto no céu cavalgavam as primeiras sombras da tormenta. Mas, nesse poente ensombrado, tudo se tornou num mundo diferente e irreal. Sonhou embevecido, com o paraíso de eterna felicidade, com a bonança dos bem aventurados, com o amor caprichoso…
E sentiu-se leve e imaterial. Esqueceu as maldições do destino, a iniquidade da vida, o seu talhe tosco e grosseirão, a avareza dos que o tinham repudiado. Cresceu e inchou-se para o ar, ergueu os galhos destorcidos e curvados, e voltou a bradar com júbilo potente, feroz e brutal: “Eu quero… eu quero!... Mas a voz sai-lhe, agora, enrouquecida, num murmúrio moribundo, que se afoga aos poucos… Compreende que ele, a árvore sarnenta da floresta, não tem direito à vida. Será um proscrito, um eterno vagabundo esfomeado a quem se nega a côdea suja de pão, e a água que mata a sede.
Pelos galhos abatidos do imbondeiro, correm lágrimas sentidas… deixa pender a descomunal cabeça para o chão, e assim se queda carpindo as mágoas que o queimam…
Hoje não tem amigos! Banido para sempre do convívio dos seus semelhantes, aí ficou na “anhara” despovoada, sem ninguém que o console nas horas intermináveis de saudade.
Quantos anos terá? É uma alma morta… apenas a ”tchiri-tchiri, abelhuda enganadora da selva angolana, lhe traz, de quando em vez, as novas desse mundo ímpio que o desiludira.
Mas não merece a pena chorar imbondeiro! Eu sou teu amigo. Companheiro na desgraça desgarrada, também eu rogo por uma gota de água límpida. E eu não choro amigo. Sei sofrer em silêncio. Vamos imbondeiro, olhemos de alto essa indiferença e finjamos pelo menos, que sorrimos quando a alma sangra. Limpa essas lágrimas rebeldes que te escorrem pelo tronco cansado. Terás a teu lado alguém, que sofre tanto como tu!
Somos irmãos em tudo, imbondeiro!!!»

Publicado no Jornal “A Huíla” em 27 de Junho de 1957. Sá da Bandeira Angola