domingo, 31 de julho de 2011

CAÇADA NO QUITEXE

Cheguei ontem do Quitexe. Em verdade, poderia dizer tantas coisas destes dias de verdadeiras férias que não fazes ideia! E contar-te afinal o quê? Que encontrei no mato, na paz, no bulício e na aventura das caçadas a “minha” Angola? Cada vez penso mais que são coisas impossíveis de narrar.

Parti na quarta de madrugada e cheguei ao Quitexe à hora de almoço. Viagem sem incidentes, claro, e sem nada digno de nota. Logo nesse dia, às quatro da tarde, parti para um “reconhecimento” às pacaças. Conseguimos encontrar duas à beira de uma lagoa, lá nos confins da mata onde um jipe (milagroso jipe!) conseguia penetrar. Contudo, elas fugiram a tempo e nesse dia nada mais se passou, até porque eu estava cansado da viagem e precisava de dormir.

Na quinta – feira fizemos uma caçada memorável. Partimos às oito e meia da noite e só regressamos às 4 da manhã do dia seguinte. Desta vez, tive bastante sorte, pois encontramos uma dúzia de veados e uma manada de pacaças que deveria ter para cima de quinze cabeças. Matámos duas e ferimos três, uma das quais eu. Foi uma caçada formidável!

Andamos pelo meio do capim, subimos morros, chegamos a meter-nos numa baixa alagada, tivemos uma avaria, mata bichámos bacalhau com batatas (e o que eu comi!), eu sei lá!

Sinto que não consigo contar o que se passou. Amanheceu quando estávamos no meio do mato, avariados, e foi uma das coisas mais belas a que tenho assistido. Só peço a Deus que Angola continue a ser esta paz que eu vivi durante estes dias, esta calma a que eu assisti. A situação económica pode-se considerar pior que péssima, sobretudo no Congo, Benguela e Moçamedes. A situação política também não é pacífica, infelizmente.

Mas, mesmo assim, Angola continua a dormitar nesta paz imensa que temos de preservar com todas as forças. Todos nós temos de lutar para que aqui não se passe nada do que está sucedendo por toda a África.

Vai ser difícil e estou convencido de que ainda vamos ter anos maus. Mas, se no fim de tudo, nós conseguirmos manter Angola os nossos filhos poderão trabalhar em paz nesta terra.

Luanda, 16 de Agosto de 1960

sexta-feira, 29 de julho de 2011

O JUCA E A BAMBINA

Acabado de chegar a Luanda, à sua casa na Praia do Bispo, o Henrique escreve este texto no dia 30 de Julho de 1960. Vejo-o sentado à secretária, frente à janela que dava para o mar; preocupado com o presente, particularmente, com os exames de Outubro, vai sonhando e construindo o futuro. Foi em 2006 que voltamos a ver a casa de Luanda onde tinha vivido com os Pais.

O meu quarto, aliás toda a casa, está uma maravilha. Por enquanto não tenho feito nada. Praticamente tenho comido e dormido. Levanto-me tarde, leio, faço visitas, dou um ou outro passeio de carro e mais nada. Vou começar a estudar depois de amanhã. Em princípio, penso fazer uma média de 4 horas diárias, mas em Setembro e Outubro tenho que as aumentar. Sabes que agora temos um papagaio? É o Juca, um grande “ponto”. Aprendeu a dizer “ O Henrique já veio”, mas o que eu acho mais piada é ele chamar “burra” à Bambina . É de morrer a rir, porque a Bambina, quando ele o diz, começa a ladrar furiosa. Também chama “matumbo” ao cozinheiro e não duvido de que este lhe apeteça fazer caldeirada do Juca…

Tenho tentado escrever, mas não consigo fazer nada. Não sei porquê, parece-me que a inspiração só vem quando estou na Metrópole. Aqui sinto-me molengão falho de ideias. Creio que, longe, as coisas assumem um valor uma importância que me obrigam a escrever, o que não sucede aqui.

Sinto um vazio enorme dentro de mim, uma vaga melancolia que eu não sei a que atribuir. É estranho, tenho todas as razões para estar satisfeito, mas a verdade é que não estou. Procuro dentro de mim a causa de tudo isto e não encontro uma que me satisfaça completamente. Pensando, talvez o motivo do meu aborrecimento seja precisamente o facto de não ter nada que fazer. Eu sei que preciso de estar permanentemente ocupado, de ter preocupações, de encher a minha vida, para poder ser feliz. Evidente, não é uma vida igual à de Lisboa o que eu pretendo ; mas também não posso estar sem fazer algo de útil, como aqui. Por muito que pareça absurdo, tenho saudades dos meus livros, dos meus problemas… dos exames até!

Esta vida em Luanda é quase igual à de Lisboa, enfastia-me.

A única coisa que me tem entusiasmado é conversar com esta gente, para auscultar a opinião acerca do que se passa.

O meu pai está com receio de ser enviado para Noqui, quase na fronteira com o Congo. A situação pelo nosso Congo não é lá muito boa e quase todos os Inspectores estão a ir para lá. Estou a ver se um dia destes dou uma saltada ao Quitexe.

Estou desejoso de ter uma caçada e gostaria de lá permanecer uns dias. Eu queria ir para o mato, queria encontrar a Angola que eu conheço e amo. Luanda, a bem dizer, já não é a minha Angola – é uma cidade, é quase Europeia. Por isso sinto a falta do mato, do silêncio, da calma, de tudo o que eu gosto”.

quarta-feira, 27 de julho de 2011

O REGRESSO

Sonhei

que te encontrava,

no recanto do jardim.

O vento

que então soprava,

zunia baixinho…

Assim:

Não chames

que ele não volta.

Agora,

nem nunca mais!

Regressou à sua infância,

à chana,

e ao capim.

Correu toda a anhara,

sob um sol abrasador.

Tu sabes

como ele detesta

os Invernos

sem calor.

Encontrou a sua Deusa,

brilhante,

cor de marfim…


Soprou-me o vento norte

no recanto do jardim,

julgando eu que sonhava...


terça-feira, 26 de julho de 2011

SER-SE POETA

Este texto foi escrito há mais de cinquenta anos, em Lisboa, mas é intemporal. O Henrique foi assim, durante toda a sua vida!

" Se ser-se poeta é saber-se e gostar-se de escrever versos – então eu não o sou; mas se, pelo contrário, é amar a vida, ter uma alma eternamente sensível e enamorarmo-nos pelo que é belo – então eu sou poeta.

Tenho dentro de mim uma alma que sente, bate e sofre com a miséria, que luta e vibra com a alegria.

Houve um dia em que eu fui a criança mais criança deste mundo; em que tive a vida toda inteirinha dentro de mim, em que havia sol, luz e cor em todo o meu ser, em que vivi tão plenamente como jamais alguém poderá sonhar, em que vivi tão plenamente como jamais alguém pode viver: todos os dias da minha vida até vir para a metrópole.

Foi cá, unicamente, que aquela vida que sempre foi tão boa para mim me apresentou as primeiras decepções de sempre: duvidei, pela primeira vez, da palavra amizade como eu a entendia, sofri a ausência de tudo o que me era tão querido.

Senti o choque da mudança de um ambiente onde sempre encontrei bondade, compreensão e carinho para outro em que apenas os preconceitos e o cinismo parecem imperar.

Como criança pela idade e pelo sentir, eu sofri. Em Angola, encontrava sempre um sorriso franco, um horizonte cheio de poesia: e eu aprendi, nessa altura embora um pouco vagamente, que a vida é poesia, poesia é viver e viver é amar tudo e todos.

Fui a mais criança das crianças, porque amava a minha terra e as suas gentes. E a criança mais criança que eu era, tornou-se simplesmente criança! Roubaram-me somente aquele sorriso de garoto travesso que eu sentia sempre em mim; mas não me conseguiram roubar o resto: a fé e a alma. Nem nunca o conseguirão."


domingo, 24 de julho de 2011

CASA DA TAKULA


Encantamento…!


Sonhado?

Não há pausa

nem regresso,

desse tempo

já passado.

Eu sei!

Mas no limbo do meu sono,

só este cacto cresceu,

gritou,

agitou os braços,

e suportou a dor.

Como eu.

Neste horizonte

sem horizonte,

Contados, são 25

os ramos

desse cacto rebentado,

crescido,

agitado,

à frente da nossa porta!

Engano?

Talvez não!

O cacto nascido, crescido,

mantido,

agitado,

à frente da nossa porta,

nos seus 25 ramos

contados,

Somos nós, intactos!


sábado, 23 de julho de 2011

BOAS OU MÁS NOTAS – EIS A QUESTÃO

Para os nossos netos lerem, meditarem, e aprenderem, todos eles, a importância da dedicação ao estudo, ao trabalho. A recompensa vem depois!

" Não são as notas que marcam as qualidades de uma pessoa, mas sim a vontade de trabalhar, a vontade de lutar pelos seus ideais. Eu continuo com ela intacta, uma vez que continuo a pensar que sou capaz de vir a ser aquilo que sempre quis ser. A nota é apenas um acidente, a substância está em nós próprios.

Quando se olha para um livro de estudo como se ele fosse apenas matéria inerte, sem interesse, que é preciso meter na cabeça, nunca o estudo rende e os resultados, mesmo se favoráveis, não são verdadeiros.

O estudo tem que ser feito com uma certa alegria, uma certa “raiva”, absolutamente indispensável para se vencer.

Chega a haver momentos, em que eu, ao olhar para as minhas sebentas até sinto um certo carinho por elas, ao pensar que serão elas que me possibilitarão a concretização dos meus sonhos. Isto sem embargo de ser um pouco cábula, pois nunca pretendi, ser um bom estudante.

Basta-me ter a noção da responsabilidade e saber que um curso não são só notas, mas o próprio esforço que se lhe dedica, consciente de que esse esforço há-de ter a recompensa quando nos lançamos na vida.

Não me considero um bom aluno, porque tenho muitos momentos de cabulice; mas também sei que não sou um cábula, porque sinto o que vale o meu curso e tenho vontade de lutar por ele."

16 de Abril 1959

sexta-feira, 22 de julho de 2011

O HENRIQUE E O DIREITO CORPORATIVO

Ando a estudar agora o dia todo com excepção do fim da tarde, infelizmente sem grande rendimento.

Mas preciso de começar a fazer nove horas diárias. A verdade é que tenho andado muito atrapalhado com o Direito Corporativo.

Sinto-me cansado, cansado não sei de quê! Enfim, já falta tão pouco tempo e eu não tenho muitas esperanças de tirar uma nota razoável. A não ser que as orais ainda demorem, o que duvido.

Mas eu “odeio” esta cadeira, pela simplíssima razão de que é quase tudo para empinar e já não tenho cabeça, nem gosto, para isso.

Datas às centenas, não menos nomes, descrição de obras – e uma pequena parte de economia corporativa, a única interessante – e vou eu decorar nomes e datas e livros? É isto que me aborrece solenemente. Em vez de tentarem fazer com que o aluno crie uma certa simpatia pelo corporativismo, são tão burros que até põem sebentas desta natureza!

Como se não bastasse a vida prática para nós vermos o que é o corporativismo

Sá da Bandeira Setembro de 1960

FÉRIAS DE VERÃO

Ao longo deste ano fomos dando a conhecer passos da adolescência, e início da vida adulta do nosso Ouvidor do Kimbo.

Nessa altura, era o Henrique, cheio de ambições, de vontade de agarrar a vida com as mãos, de ter um futuro brilhante. Saiu de Angola em 1957, rumo a Lisboa, rumo à faculdade de Direito.

Já vimos que, as dificuldades de adaptação foram muitas, e imensas as saudades da sua terra Natal.

Voltou a Angola em 1959, 1960, 1961, para passar as férias de Verão, mas sempre com o problema dos exames em Outubro. Havia a necessidade de conciliar estudo e lazer, o que não era fácil.

Em 1962 passa férias em Valença do Minho, como já tivemos ocasião de dizer, mas em 1963 vai, durante o Verão, para Cabo Verde.

Voltámos a Angola em Agosto 1966 para umas curtas férias. De novo, juntos, quarenta anos depois em Setembro 2006.

São algumas lembranças, pequenas estórias, desabafos desses momentos de reencontro com a sua Mãe África, que neste Verão, da sua casa da Takula, deixaremos escritos no Blogue que criou

quinta-feira, 21 de julho de 2011

NOTAS POLÍTICAS (87)

Enganam-se aqueles que encaram a função consultiva como pouco relevante ou potenciadora de fracos resultados.

Pelo contrário, penso e defendo que a existência de órgãos consultivos, em que têm assento representantes dos mais diversos sectores da vida económica e social, é uma demonstração palpável de que a democracia representativa e pluralista se enriquece e aprofunda através da participação institucional dos agentes colectivos da sociedade civil.

A função consultiva implica, também, que o Governo, mais do que ouvir, escute; para além de consultar, pondere; ademais de estar, compartilhe. Se assim não fosse a função consultiva poderia esvair-se num ritual vazio e formalista e, seria então, transfiguradora da ética da participação

terça-feira, 19 de julho de 2011

FOI HÁ UM ANO

Foi há um ano que confessamos, que, o processo de adopção deste blogue tinha sido longo, doloroso e difícil. Desde então, tentamos transmitir, através das palavras do Henrique, as memórias de um passado pessoal onde se evidência, a persistente construção de um ideal de vida; de uma lenta, progressiva e trabalhosa conquista do um lugar ao sol; de uma vida feliz, onde todos os seus sonhos fossem concretizados. O único sonho de que abdicou foi o de viver em Angola. E dele abdicou em função da família que queria constituir, da estabilidade que pretendia proporcionar-lhe, e, do amor que tinha a Portugal. Nunca se arrependeu. Ficaram as saudades dos tempos, em que “menino e moço” sonhava com um Portugal maior, com uma Angola independente onde todos os Angolanos tivessem o mesmo direito de dizer: esta é a minha terra, foi aqui que eu nasci, foi aqui que os meus pais construíram a sua casa. É aqui que estão as minhas raízes. Quero trabalhar aqui. Quero contribuir para o engrandecimento desta Angola, minha terra!

O sonho da família foi superior ao outro sonho. Dele abdicou sem mágoas. Ficou a saudade. Expressa em todas as páginas deste Blogue.

Durante este ano, ficou evidente que, o Homem que todos conhecemos, tinha uma personalidade de firmeza, fé, atitude, princípios e coerência invulgares. Mais, que tudo isso tinha sido caldeado numa infância, adolescência e juventude também particularmente invulgares.

Mesmo os seus textos profissionais estão marcados pelo ideal de uma vida sonhada desde a infância.

Que os netos retenham a imagem real deste Homem, que foi o Avô, de quem todos têm imensas saudades, mas cujo exemplo será o farol das suas vidas

De novo, na casa da TaKula, a família vive a sua memória.

domingo, 17 de julho de 2011

NOITE NO CHINGUE (5)

Depois molhando os lábios acrescentou:

- Compadeceu-se então Líbua, a filha do soba, e em voz baixa fez-lhe um convite:

-“Vem comigo, oh mâma, que eu te oferecerei de comer e te darei de beber. Anda vem!”- e pegou-lhe na mão e conduziu-a à sua cubata. Aí, Nha Caçola – ouvis! - encheu a barriga até se fartar e bebeu de “meia” que ficou como uma bola. Saciada assim, acocorou-se a pensar, a pensar, a sua fala roufenha acabou por encher o silêncio em que estavam as duas.

-“Ouve, Líbua- começou a velha – antes que um novo sol tenha nascido no céu, será esta terra coberta por tanta água, tanta água que não haverá feitiço capaz de bebê-la. Ficará aqui um lago, Líbua, um lago belo, cuja história os negros hão - de contar quando os anos forem velhas. Mas tu foge, Líbua, foge antes que a ira dos deuses desça à terra.”

- e dito isto em tom rápido, Nha Caçola despediu-se e desandou.

-E depois, oh Buala, e depois?

-Esperai, gentes, que eu já vos digo.

Ficaram quietos, aguardando. Leve, porém, a voz do contador se elevou acima da canção do quissanje:

- Veio a noite sobre a banza de Iunculo- Mbebe. Os homens, cansados, estenderam-se sobre as esteiras, junto aos tchingilos, e ficaram-se, sonolentos, a mirar os longes sem viração da terra. Nem um sopro de vento açoitava o ar, oh gentes, e na châna rasa não bulia ruído. Tudo quieto – percebeis - quando num repente, - seria o Cazumbir, oh gentes?

Os homens ergueram-se de um salto, as mulheres pararam de mexer a comida e as crianças correram a agarrar-se às pernas das mães. Uma voz mais retumbante que o rugir do dumba pusera o povo de corpo tremente.

- Mais forte que a voz do dumba, Buala Nambuco?

-Sim, sim, gentes, muito mais forte.

E de quem era?

-De Nha Caçola, a chamar por Calunga – e Buala Nambuco pôs-se de pé, agitou os braços e imitou:

-Calunga! Calunga! Tu, senhor dos céus e deus sobre os deuses, manda teu feitiço infernal para castigar o povo de Iunculo- Mbebe . Um povo rico, oh grande Calunga, que nem me apresentou uma mão de funge, nem um resto de água. Calunga! Calunga! Arrasa esta terra farta e sepulta os seus homens maus – e o quissange do velho Nambuco gemeu, logo, sob os dedos ágeis que o apalpavam. Notas vigorosas rebentaram. E o povo, de olhos abertos, escutou ainda:

Foi uma grande desgraça, oh gentes. Líbua salvou-se, mas nenhum homem mais escapou à ira dos deuses. Nenhum homem. Os ares encheram-se de fogo e a terra chupou água, chupou água, tanta chupou que a terra se ficou em água. Alagaram-se os campos e morreram as gingubas. Caíram as árvores e as pedras sumiram-se afundadas. Pôs-se o céu escuro de dia e de noite vermelho. Até que quando os trovões já iam longe, um lago grande, de águas azuis surgiu no lugar da antiga libata de Iunculo- Mbebe.

- O Lago do Feitiço!

Sim gentes, o Lago do Feitiço!

- Aiué, tatué!

- Aiué…é…é…é…

Enche-se o ar da cubata de um rumor de palmas e gargalhadas. Ninguém pensa já na volta de Tala Mutebe, nem nas angústias do povo. Agora os rostos luzem e os olhos estão abertos, mais abertos a cada vez que o marufo se espicha pelas goelas. Lá fora, um cão furou o profundo silencio da noite. A lua, da cor do milho assado, espreitou pela janela de uma nuvem e cobriu a banza de um manto prateado. Depois, outra nuvem veio, que tapou a lua. Na cubata de Buala Nambuco, os pretos sonham. E o vento do mato anda por ali a macaquear, enchendo a alma do negro de medos e fantasias, fantasias e medos que hão-de passar de geração em geração, porque pobre é o povo sem histórias que contar e que sonhar…

FIM

sábado, 16 de julho de 2011

NOITE NO CHINGUE (4)

- Nha Caçola - atentai, pois – palmilhava a terra há tanto tempo, que seus pés estavam gretados de tanto andamento. Descera ao mundo num raio de sol, trazendo de Calunga, senhor dos Deuses, os estranhos feitiços e as suas ordens. “Nha Caçola – disse-lhe decerto o grande Calunga-; vai lá abaixo e cruza as anharas. Entra nos bosques e sobe os riachos, fareja as senzalas e dormita nos chingues. Hás-de ver, por minha conta, quais os homens que são bons e os que são maus. Os primeiros – eu te ordeno, oh Nha Caçola cobre-os de honra e dá-lhes venturas; aos outros – nunca te esqueças – manda-lhes o vento e o trovão, a chuva e a lama, todos os males que tu entenderes”. Assim, gentes deve ter conversado Calunga com a mensageira do céu – e Buala Nambuco dedilha umas notas mais do seu quissange. Mal respirando, os negros fitam-no sem pestanejo, grossas argolas de fumo a fugirem da mutopa para o tecto.

- Deambulou Nha Caçola pela terra anos a fio. De libata a libata, de povo em povo, conheceu as coisas do mundo e de tudo tomou nota. Até que uma tarde, longo caminho deixado às costas, chegou ela à chana mais vasta que seus olhos já tinham topado. Ih, gentes, que terra tão farta! Sabeis do gado de Samba Muquilo, que enche as planícies de todo o Cunene?

- Oh, sim, sabemos! - responderam-lhe os outros.

-Pois havia lá mais bois que os bois juntos de Samba Muquilo! - estica os braços o velho, como a abarcar com eles a imensidão. E prossegue:

-Do cimo de uma lombada, ficou-lhe Nha Caçola contente por ver o povo em faina aturada.

Mas, com tão pesado caminhar nas pernas, vá de sentir pelas entranhas uma fome glutona e na boca a secura da sede. “Me hão-de dar um naco de funge para matar o bicho e uma cabaça de água para molhar a saliva”- e pensando assim, foi costa abaixo, rumo à banca de Iunculo-Mbebe, o soba da terra. Andrajosa e cansada, chegou-se então Nha Caçola ao meio das gentes e pediu agasalho, por caridade:

- “Oh boa gente desta terra rica, quem dá um pouquinho de funge a uma velha faminta?” – Mas os homens - quereis ver – encolheram os ombros, de altivos. Cuspiram no chão e tornaram ao trabalho sem se deterem. Nha Caçola ficou confusa. Lhe repetiu:

- “Oh boa gente desta terra rica, quem dá um resto de água a uma velha sedenta?”- Por sua vez, pararam as mulheres de sachar as lavras e olharam a mendiga da carapinha aos pés.

Então um chorrilho de risadas estoirou, pelo burlesco da figura dela. “ Que feia! Que velha! Tão rota!”- e as mulheres voltaram a semear os valados.

- Foi repelida assim – ficai sabendo, oh gentes – a velha Nha Caçola, serva de Calunga – e pediu Buala Nambuco uma golada de marufo.

sexta-feira, 15 de julho de 2011

POR ISSO ESCREVO


Tenho que respirar

para viver.

Por isso choro,

A mágoa deste amor

perdido.

Tenho que lembrar

para viver.

Por isso choro,

o sonho deste amor

esquecido.

Tenho que amar

para viver.

Por isso choro

esta enorme, imensa dor

que não faz

sentido.

Tenho que chorar

para viver.

Por isso escrevo.


NOITE NO CHINGUE (3)

A nudez dos rostos acentua-se. Há caras marcadas por um ricto de angústia. E expressões de tristeza, de cansaço, conformadas, sem revolta. Sombras esgueiram-se de encontro às paredes do Chingue. Então Buala Nambuco gagueja comovido:

- Mâma… não chore assim. Nossa terra é nossa terra, você não sabe? E nossa terra é boa, mãma Nhirica. Tala Mutebe há-de vir amanhã com nhâma para todos. Olhe sô mâma Nhirica:

não vê a lua escondida e o mato quieto? O vento sem asas e a noite escura? Anda caça no capim verde dos carreiros. E Tala Mutebe, quando chegar, ouvirá as gomas e os tchingufos anunciarem a festa do nosso batuque. Ai, mâma Nhirica, a nossa terra é boa ainda - sorri melancólico, enquanto a velha se fica enxugando o pranto ao sêbo da tanga.

- Tala Mutebe muala aquindoluque… - repetem os outros a voz sumindo-se, não vão os espíritos entender o desejo das gentes e o grande Zambi desfazer de um sopro a esperança ao povo. - Tala Mutebe há-de voltar… - como que a rezar, cabeça baixa, olho espantado, beiçana estendida…

-Ei gentes, querem saber uma história? Uma história velha, velha como a manha do coelho? – Buala Nambuco pula a custo do chão espalmado da cubata, vai ao fundo do chingue e, em passadinha de pardal, de lá torna, acariciando na mão escura o quissange com que acompanha as arengas longas das noites maduras. Pernas cruzadas, seus dedos esguios percorrem com vagar as tiras metálicas do instrumento. Formando círculo, os pretos chegam-se uns aos outros mais e mais. Mãe Nhirica parou de chorar e ficou agachada ao pé das panelas, enquanto as mãos chocando-se, começam o ritmo triste. Depois, tudo fica em silêncio.

-Foi na lua mais velha – escutai então, oh gentes – quando um povo vivia, rico e farto, nas terras que ficam agora sob o Lago do Feitiço. Farto e rico – ouvi bem – como outro não houve dez tiros de canhangulo à roda – as notas do quissange sobem, envergonhadas, primeiro, rápidas e fortes com o avolumar das palmas. Buala Nambuco ergue o rosto. E volta à baila, atento o povo:

- É uma história de barbas, oh homens! Veio da barriga dos séculos, tantas chuvas já caidas sobre ela que o mundo seria um grande mar se lhe quisesse saber os anos. Contou-me R’hicuje, o andarilho do quissange mágico; e a boca dos batedores dos matos carregou-a pelas veredas da selva e as canções dos dongueiros deixaram-na correr ao longo dos rios. Vou contá-la também, vós o quereis?

Heuá, heuá, velho Nambuco conta lá.

quinta-feira, 14 de julho de 2011

NOITE NO CHINGUE (2)

- Tala Mutebe já voltou da caça, oh gentes?

-Memo nada, Buala Nambuco.

-Pf! – faz o velho – Assim, não está bem, oh gentes. Tala Mutebe abalou na lua velha quando a châna fica escura e os bichos apontam aos bebedoiros. Como é que ainda Tala Mutebe não voltou com carne?

Os outros ficaram calados. Buala Nambuco tem razão, mas o tempo anda zangado e a caça foge das planícies por onde os homens se atrevem.

- Os novos não prestam para nada – ataca outro velho, de lado. Quando os homens viviam lá mais no fundo do rio, o povo tinha comida sempre fresca e o batuque zumbava todas as noites. Mas isso já foi há muito tempo. Há muito tempo…

Concordam todos, em profundos acenos de cabeça. Apenas Zimbué, um preto moço que ainda não saiu da aldeia á cata do mundo, atira, num desabafo:

- Mas já cheira mal a tuqueia, oh gente!

- Ah sim? - regouga Tacala, o que falara antes. E tu que fazes?

Ximbué curva a cabeça, embezerrado. Os velhos riem, batendo grandes palmas de encontro ao umbigo descaído das barrigas. Os novos, esses somem-se de olhos no chão, porque se os velhos envergonham a tribo bebendo marufo a toda a hora, eles também mais não sabem mais que atormentar as raparigas à volta das lavras, e correr o mato na apanha dos maboques. Só Buala Nambuco fica olhando os outros de cara erguida. Tem nas pupilas uma luz de gozo, mas, no fundo, também ele sente que Tala Mutebe não tem culpa de a caça andar escondida. Os Luenas há muito que viram fugir a sorte das grandes chacinas, quando as chânas eram cruzadas ponta a ponta em berraria. Buala Nambuco de tudo se lembra. Ele conhece as histórias mais belas da sua raça, desde os tempos em que os bantos vieram dos grandes lagos, até ao dia em que surgiram os brancos e encheram a terra de coisas novas. Mas agora está tudo diferente. Ah, está tudo diferente, sim,!... – e Buala Nambuco põe-se a perscrutar as feições paradas das gentes, como se cada um assinalasse o destino perdido do povo. Em volta do lumareu os homens quase se deixam adormecer. Quebra o silêncio, apenas, o faúlhar crepitoso e o vai - vem da mutopa que os lábios chupam a haustos contínuos.

Mãe Nhirica, faina acabada, encostou-se a um dos cantos do chingue. Seus olhos perdem-se no vermelhusco das chamas, enquanto espera. E espera – nem ela sabe o quê. Talvez as palavras que Buala Nambuco costuma atirar em voz pausada, numa cadência evocativa das épocas dos batuques em cheio e das procuras fatigosas aos búfalos e às palancas, quando ela era moça e o povo vivia rio abaixo… Mãe Nhirica espera. E na sonolência do ar, seu riso chorado furou o espaço de riste e foi transformar-se num eco de mágoa.

-Ah, Buala Nambuco, tempo bom não volta mais. Não volta mais, Buala Nambuco – e Nhirica, a mãe do povo, tem no choro a dor aguda da saudade.

quarta-feira, 13 de julho de 2011

CONTO ANGOLANO (NOITE NO CHINGUE)

Em 1959 o Henrique levou este conto ao Concurso Literário da Queima das Fitas da Universidade do Porto. Utilizou um pseudónimo: “N’Gola”. Nunca foi publicado. Associamos um glossário para melhor compreensão do texto.O conto é longo. Por isso vamos editá-lo em dias diferentes, à semelhança do que fizemos em outras ocasiões. Boa leitura.

Glossário:

Aiué Tatué……….…………..interjeição que exprime alegria, contentamento; também dor,

espanto

Banza…………………………… povoação, aldeola.

Chingue………………………… cubata de teto afunilado

Châna……………………………. planície

Calcinha………………………… nome por que é conhecido o indígena destribalizado, com pretensões a civilizado

Canhangulo …………………..espingarda velha

Cazumbir………………………..alma do outro mundo; espírito dos mortos.

Dumba…………………………….Leão

Funge………………………………pirão de mandioca

Goma………………………………instrumento musical gentílico

Ginguba…………………………. amendoim

Libata……………………………..pequena povoação

Maboque………………………. laranja do mato

Matabicho………………………gratificação, gorjeta.

Marufo…………………….…………vinho de palmeira

Mutopa........................................cabaça de água, fornilho de barro, tubo de madeira onde se coloca tabaco ( ver imagem em cima)

Muâna……………………… ……….criança

Milonga…………………………….. questão sarilho

Monandongue…………………. filho menor, criança

Muxoxo…………………………… sinal de desprezo feito com os lábios

Meia ……………………………….. água

Mangonha……………………….preguiça

Muia Aquidonluque………… vai voltar

Muito esperto no cabeça… esperto, fino, sagaz.

Nhâma……………………………. carne

Ôbê…………………………………homem

Puto………………………………..Portugal, ( a Metrópole)

Quissange……………………… Instrumento musical para dedilhar. Quando sente tristeza ou solidão, o camponês angolano pega no seu quissange e dedilha-o cantando baixinho (imagem ao lado)

Tchigilo………………………….. porta

Tchingufo……………………… espécie de tambor

Tuqueia………………………… peixe miudo

Xingar…………………………… insultar, injuriar, arreliar

NOITE NO CHINGUE (1) - CONTO ANGOLANO

Buala Nambuco era o velho mais velho da senzala. Já tinha mesmo, perdido a conta das luas corridas desde o dia em que, muâna, fora com seus irmãos de raça cumprir o rito da circuncisão. Ficara homem. E, de então até quando topara caruncho nos vimes das pernas, Buala Nambuco – ora pois! – vivera coisas invulgares e carreara aventuras de arrepiar .

Era do tempo em que os bichos comiam os homens e os pretos andavam em guerra com os brancos vindos de longe. Ah, sim! Buala Nambuco era um velho que tinha “muito esperto mesmo no cabeça”. Uma vez, ainda seus braços eram tão fortes que podiam suster-se noites a fio de azagaia tensa, ele lobrigara sozinho, na quebra da picada, com dois foliões, useiros na roubalheira das peças caçadas. Viu-lhes, num lance, os olhos a piscarem de cobiça para o corpo da gazela que lhe bamboleava aos ombros.

Fizeram-lhe alto, os outros, a três passos de distância. Mas Buala Nambuco nem pinga de medo. Rápido, parou. E, num berro sonoro, virou-se para trás a chamar: “ Ei, gente, porrinho em cima destes”- e chamou e chamou sempre a rir até que os foliões, zás-trás pernas para que vos quero! Buala- Nambuco ficou-se a dançar de tamanho gozo. E sempre assim foi, tão esperto como o coelho das hortas que papa as couves sob as pernas dos granjeiros.

Agora – que pena – Buala Nambuco já não pode andar ao cheiro da caça, ou requebrar o corpo ao som da batucada. Cobriu-se-lhe a cara de um manto de rugas e na carapinha rala já se encaracolam pontos brancos ao desafio. Só os olhos, uns olhitos vivos que luzem no negrume da pele, mostram ao povo ter ele ainda “muito esperto no cabeça”.

Na senzala, ele vive sob a chota mais chegada à riba esquerda. É uma palhota igual às outras, talvez mais acanhado o tchigilo que leva ao centro do braseiro, onde aquece, solitário a ferrugem dos seus membros. Aí pela nortada das noites frias, Buala Nambuco desafia, ao correr das horas, o ror de histórias aprendidas no curso de seus anos velhos. Mal mãe Nhirica lhe vem entregar o último naco de funge, atirado com os dedos garganta abaixo, Buala Nambuco – laripó! – dá um estalinho com a língua e arreia um muxoxo de prazer à velha amiga que lhe embala o pirão. “ Mâma Nhirica, não me dá ainda minha mutopa”- e barriga farta o riso alargando os beiços, Buala Nambuco cruza as pernas mesmo ao viés do fogaréu e assim se deixa modorrento, até sentir o soprar da ventania ao derredor. Na banza luena já o povo gastou o dia. Um a um vêm então chegando-se à cubata do velho Nambuco, que a noitada treme de frio e corta aos homens o gosto das lengalengas a pingar sob os negrumes cálidos. “Como estás, oh Buala Nambuco”;” Boa Noite mãe Nhirica” e torno aos brasidos cada um fura seu poiso, enquanto o cachimbo de água, glu-glu chiando vai de boca em boca e anda de mão em mão. Em Buala Nambuco espreita um risinho de velho sabido. Que ele já sabe ao que o povo vem. Ai sabe, sabe! Mas gosta de desentender, indagando daqui e dali, primeiro, as novas do mundo que lhe fica além da sua cubata. Por isso a conversa arrasta-se, descontínua.

terça-feira, 12 de julho de 2011

ESPECIALISTA EM MARCAS

Faz hoje 15 meses que ele partiu. O texto que o nosso filho Nuno escreveu nesse dia diz tudo. As marcas que deixou na sua família são tão fundas, que o pai continua presente em todos os momentos da nossa vida. Não há distância nem esquecimento. Só memoria viva.

“ Não… Desculpe mas não me lembro de si”.

“Trabalhei com o seu pai”. “Era amigo do seu pai”. “Estive na Provedoria com o seu pai”. “Sou um cidadão anónimo e não conhecia o seu pai…”

A fila de pessoas vai para lá das paredes frias e eu sorrio. Como tu farias certamente. Com a sedução de quem não está. Sorrio mas o meu coração chora. Sorrio pelas marcas que deixaste em tanta gente. Os que fazem fila aqui na igreja e os que nem fazem ideia de que foram marcados por ti.

Pelas marcas que deixaste no País. Marcas à esquerda e à direita. Como se as marcas tivessem direcção que não as de apontar o caminho certo. E como tu sabias que o caminho pode ter várias direcções. Mas só um sentido.

O da Justiça e do amor.

O do trabalho e da família.

Sabes que eu digo que trabalho em “Marcas”. As outras. Mas tu é que eras um especialista. A fila ao longo das paredes frias sabe bem o que são as tuas marcas

As marcas estão cá. A dor que sinto no meu coração é o sentir dessas marcas. Afinal o sentido é só um: marcar o teu próximo. Com amor. Com verdade. Com dedicação.

Deixa marca. Nesta fila. E nas outras que desembocam dela.

Deixa marca. Sonha muito e vive ainda mais. Deixa marca. Eu sei que deixa. Cravada no mais fundo do meu ser. Deixa marca. E por isso dói. Deixa marca. E por isso vivo.

domingo, 10 de julho de 2011

FÉRIAS EM SÁ DA BANDEIRA (1961)

Cheguei hoje. A minha viagem não teve história – foi banal e normal. Apenas não avisei os meus pais da data certa em que chegaria e, por isso, fiz-lhes a surpresa de aparecer repentinamente em casa!

É terrivelmente estranho, mas não me sinto feliz. Pelo contrário, é uma grande tristeza e uma grande saudade o que me vai cá dentro. A nossa Angola está ferida. E eu também é como se tivesse sido ferido com ela. Sou extremamente sensível para encarar as coisas de frente, com objectividade.

Não. Eu não nasci para matar, eu não nasci para ver o mundo em guerra, eu não nasci para uma época como a que atravessamos. Eu não posso pensar que este sossego de Sá da Bandeira pode ser o prenúncio de tempestade; eu não posso saber que estas ruas desertas representam o medo dos homens brancos; eu nunca sonhei que tivesse de dormir com as janelas e as portas fechadas e que à minha mesa de cabeceira estivesse uma pistola para o que desse e viesse. Tudo isto me entristece profundamente.

Que mal teríamos feito nós, os homens brancos, para sofrermos este castigo? O medo, a ânsia, a dúvida, são os piores sentimentos que podem pairar no coração dos homens. E nós, por muito que se diga o contrário, vivemos hoje dentro do medo e da expectativa pelo futuro. O futuro… nunca ele foi uma incógnita tão grande.

Sinto dentro de mim a imensidão de Angola e a pequenez do homem branco e a desconfiança com que nos olha o negro. E é isto modo de viver? Onde está a nossa Angola? Onde está a nossa querida terra, aquela que nos habituamos a ver na paz e no amor? Procuro-a e não a encontro. Porque o silêncio que outrora era paz, agora é expectativa; porque a paz que outrora era tranquilidade agora é medo; porque as portas já não estão abertas, as ruas estão desertas e nunca se sabe o que se esconde na periferia da cidade.

Nós confiamos num futuro melhor. Nós temos esperança em dias melhores. O que me custa, o que me dói, é não ter encontrado a minha Angola. Não acredito que tenham sido os homens da nossa terra que a fizeram sangrar assim. Não pode ser. A coisa vem de fora, vem da luta que o mundo trava. Ninguém sabe para onde vai o mundo, e porque não há paz, nem felicidade, nem alegria é que eu sinto toda esta tristeza imensa.

Sá da Bandeira 4 de Agosto de 1961

sábado, 9 de julho de 2011

FÉRIAS EM SÁ DA BANDEIRA (1960)

Hoje choveu. Não calculas a satisfação que tive em olhar a chuva. É das coisas mais belas a que se pode assistir. Primeiro, a chuva a cair e, depois, aquele odor profundo que se desprende da terra. É um cheiro de vida, qualquer coisa de forte, de formidável, que os homens nunca conseguirão destruir. Enche-nos o corpo, dá-nos vitalidade, faz-nos sentir homens.

Não sei que estranho sortilégio a Terra exerce sobre mim desde pequeno. A verdade é que não me consigo ver com uma enxada nas mãos ou a dirigir uma herdade – mas eu amo a terra como se ela fizesse parte de mim próprio.

Não sei explicar, mas não posso desligar o meu futuro, a minha vida, desta terra. Mas não quero pensar, porque se começo a pensar vêm-me à ideia as dezenas de problemas que Angola atravessa. Somos 200.000 brancos, cerca de 4,5 milhões de pretos, temos a opinião mundial contra nós, a população metropolitana está contra o Governo e é o Governo que apoia o Ultramar – logo, não podemos contar com ela; aqui reina o desemprego em muito sítio, a situação económica é má, nós próprios Angolanos, não estamos unidos na maneira de pensar – que milagre nos salvará? Que milagre nos fará atravessar esta tormenta toda? Não sei é preciso não sonhar, estar atento às realidades e, sobretudo, ser implacável, inflexível, na luta que houver de travar. Não podemos ter um momento de fraqueza ou de desânimo, pois cada fraqueza, cada desânimo, pagá-la-emos bem cara.

Como queres que eu não receie ter de dormir com uma arma ao lado, como no Quénia, ter de escoltar os meus filhos à escola como na Argélia? Será isto que os homens procuram? Será isto o Mundo? Felizes os que não pensam, os que não lêem, os que não meditam! Felizes deles porque, se a hora chegar, não terão tempo sequer de saber que ela chegou! Fico a pensar que, com 20 anos, não há direito que Deus me ponha a cabeça cheia de preocupações. Que ele me perdoe, mas também tenho direito a gozar a bem aventurança dos burgueses!

Queria não pensar em tudo isto, pensar que a vida se resume a tirar um curso e singrar, casar, ter filhos… E a terra, depois? E a chuva? Poderemos nós, daqui a anos, ver cair a chuva da varanda da nossa casa? Ou estaremos então a ser escorraçados da nossa própria terra, em nome da emancipação dos povos? O mundo anda doido, de certeza! Pois vê só: para o Congo se tornar independente, os homens proclamaram solenemente o “sagrado direito à emancipação”; mas quando Katanga, quando a Hungria ou a Roménia, querem o mesmo – ah, não, aí já não há nenhum sagrado direito!... É contra a loucura deste mundo que temos que lutar – pobre destino o nosso!

Sá da Bandeira 20 de Setembro 1960

quinta-feira, 7 de julho de 2011

GENEBRA 1992


1992. Conferencia Internacional do Trabalho, Genebra

NOTAS POLÍTICAS (86)

Temos que compreender que os apoios financeiros da Comunidade, são apenas uma, e só uma, das condições para o Progresso e para a Justiça no nosso País.

Disse (e sublinho) uma das condições. Jamais os fundos comunitários serão uma solução. Porque a solução para o nosso desenvolvimento tem de ser essencialmente, endógena.

Este enorme desafio não impende apenas sobre o Governo e as forças políticas do nosso País. É preciso ir mais além.

É preciso que a nossa sociedade civil seja cada vez mais chamada a discutir opções, cada vez mais envolvida e participante nas estratégias de desenvolvimento, cada vez mais actuante como tecido de irrigação de um progresso em harmonia.

Lisboa 5 de Fevereiro 1993

NOTAS POLÍTICAS (85)

Nenhuma sociedade resiste aos desafios externos e às debilidades internas se não encontrar nos seus próprios filhos os primeiros soldados postados nas trincheiras que abrem o futuro.

De nada servem os generais sem bons soldados, embora seja certo que bons soldados merecem também bons generais.

Que seja, então cada um de nós, no trabalho, na capacidade organizativa, na perseverança, na honestidade e no ânimo, um bom soldado para Portugal.

19 de Junho 1993

quarta-feira, 6 de julho de 2011

NOTAS POLÍTICAS (84)

O País tem o direito de esperar que o futuro da Concertação em Portugal seja, a partir de agora, completamente diferente, porque se criaram plataformas muito vastas para o desenvolvimento do diálogo social.

A confiança reciprocamente manifestada deve consolidar-se e ampliar-se na continuação das negociações. Quem quis ficar de fora, de fora terá de ficar nestas negociações subsequentes, porque um acordo é o somatório de cedências recíprocas, de ganhos e de perdas, de equilíbrios ponderados.

O futuro pertence aos que souberam ousar e consumar um compromisso significativo para a melhoria das condições de vida e de trabalho dos portugueses e para o desenvolvimento económico do País.

Nele não cabem os que permanecem agarrados à sombra de muros que não souberam fazer cair.

Saudemos, por isso, os que se aprestaram a fazer futuro e deixemos no “cemitério da história” os que aí quiserem ficar.

Lisboa, Assembleia da Republica, 25 de Outubro de 1990 (A propósito da assinatura do “Acordo Económico – Social” assinado entre o Governo, a U.G.T., a Confederação da Industria Portuguesa e a Confederação do Comercio)

terça-feira, 5 de julho de 2011

ANGOLA ANTES DE 1974

COOPERAÇÃO COM ÁFRICA

Receber sem dar não tem futuro; e dar sem receber não tem sentido. Pelo contrário a nossa cooperação tem sentido e tem futuro porque assentou no respeito mútuo, na confiança recíproca, no entendimento concertado e na concepção e execução conjugadas dos projectos e das acções em que ela se vai desentranhando.

Uma cooperação que se afunde em ofícios, que serpenteie por canais burocráticos ou se estorve em regulamentos minuciosos, é a antítese daquilo que é preciso saber fazer, e fazer, para se alcançarem os objectivos de ajuda ao desenvolvimento.

Mas deixem-me dizer também que estou certo de que não há cooperação duradoura sem alma que a alimente, e sem sonho que a sustente.

É preciso ter capacidade de viver para ter capacidade de realizar! É preciso ter capacidade de sentir para ter capacidade de ajudar! E é neste sentido que quero expressar aqui a minha certeza de que os técnicos portugueses e os técnicos africanos lusófonos, que são os executores e responsáveis imediatos desta cooperação, constituem, pelo empenhamento e pela dedicação que genericamente têm colocado nas acções em que estão envolvidos, um pilar básico desta obra comum.

Eles têm sido, e confio que continuarão a ser, o ingrediente - motor mais sólido, porque medularmente humano, desta autentica “conspiração de Amizade”, que nenhum orçamento poderá jamais contabilizar! É esta “teia de fraternidade” que nenhuma tecnocracia avançada poderá alguma vez forjar e manter. E é esta capacidade, não tanto de falarmos a mesma língua, mas sobretudo de falarmos a mesma linguagem de sentimentos de vida, que nos junta e nos faz querer continuar em conjunto.

1º Encontro das Inspecções do Trabalho de Portugal e dos Cinco Palop’s

Aveiro, 13 de Maio de 1989

KALUNDU

ouves o vento a gemer,
no meio do mato, à noite,
sentes o vento a correr,
cada vez mais agitado?
zuu… zuu… zuu…
o vento tem kalundu…

ouves a leoa rugindo,
com ciúmes do leão,
com apetites de fera,
ouves a leoa bramindo?
uuu… uuu… uuu…
a leoa tem kalundu…

não vês o mar trovejando,
ameaçador, furibundo,
como se nele existissem,
enraivadas,
todas almas do outro mundo?...
não vês o mar rebramando?
uuuu… uuuu… uuuu…
o mar tem kalundu…

não vês o fogo incendiando
as libatas, as sanzalas,
as lavras, tudo arrasando?
não vês o fogo, o demónio,
que é o próprio belzebu
em forma de labareda?
o fogo tem kalundu…

não vês o sol, ao meio-dia,
quando é mais forte o verão,
quando o calor é mais forte,
o sol escaldando o chão,
dando febre a todas coisas,
- o sol que é fogo do inferno
além da vida e da morte?
o sol tem kalundu…
como tu!

- mas tu és mais do que o vento,
mais que a leoa, que o mar,
mais do que o sol e que o fogo,
quando está a batucar…

não há sol que queime tanto,
fogo que incendeie tanto,
como o teu olhar me queima,
me incendeia, o teu olhar,
que até me deixa em quebranto…

não há vaga, não há mar,
que ondeie tanto e requebre
como o teu corpo selvagem,
que é mais ligeiro que a lebre
e se torce mais que a cobra,
em fantástica manobra,
e mexe-se mais que o vento,
- teu corpo, forma de vento,
que baila e que faz bailar…

e as garras com que me prendes,
e em que me deixo prender,
não as possui a leoa;
porque o teu jugo não mata,
nem magoa,
mas dá vida e dá prazer!

quando tu danças cantando,
cantando e dançando assim,
batucando, batucando,
e a noite se faz mais negra
e o batuque não tem fim,
o teu corpo quase voando,
belo, sensual, ardente,
o teu dorso semi-nú…
… parece que a vida és tu!
e tu, e eu, toda a gente
à roda do teu batuque,
e tudo quanto nos cerca,
- tudo tem kalundu…

GERALDO DA BESSA VICTOR (POETA ANGOLANO)

segunda-feira, 4 de julho de 2011

NOTAS POLÍTICAS (83)

Importa registar a evolução, infelizmente preocupante, que entre nós atingiu o mundo do emprego.

É um erro, susceptível de se pagar caro, supor que a realização concreta do direito ao trabalho – considerado justamente como um direito fundamental de todo o ser humano ao qual a sociedade tem obrigação de dar resposta positiva – se poderá efectivar sem que nela se implique a ponderação e conjugação de medidas conexionadas com a mobilidade profissional, com justas condições salariais, com o ambiente de trabalho, com qualificações profissionais ajustadas a uma estratégia de desenvolvimento económico suportado pela ideia básica de realização integral da personalidade humana, enfim, com a própria gestão da vida activa.

O recurso a acções de mobilidade profissional ou geográfica desgarradas da política de trabalho ou da política de desenvolvimento regional, por exemplo, o próprio recurso à melhoria do subsídio de desemprego sem atendimento para com a prioridade a dar a soluções de alternativa a encontrar no âmbito de uma concertação social – tudo isto não possibilitará, como não tem possibilitado, quer entre nós, quer em outros países, soluções mais tranquilizantes na linha de um combate esforçado e coerente ao desemprego.

É essa constatação que me leva a repisar a necessidade absoluta de uma actuação, harmonizada dos diferentes vectores públicos envolvidos – desde a política económica à fiscal, desde a política educacional à política de transportes, da habitação e outras -, para além da necessidade, igualmente sentida, de uma associação dos parceiros sociais.

Lisboa 13 de Maio de 1981

domingo, 3 de julho de 2011

NOTAS POLÍTICAS (82)

Já exprimi por diversas vezes a convicção de que o melhor método de fixação de condições laborais e de acerto dos problemas que interessam aos trabalhadores e empresários é o método da livre negociação e da concertação das questões que surgem naturalmente entre os interesses colectivos de uns e de outros.

Gostaria de manifestar a minha esperança e o meu empenho na consecução desse objectivo e na medida daquilo que os próprios parceiros sociais entenderem que possa ser o contributo desejado da acção governativa.

Mas entendo que a nossa democracia tem de ser uma democracia política, económica, social e cultural.

Ela exige uma participação empenhada das associações sindicais e dos empresários e suas organizações; por isso, desejo que cada homem e cada mulher do nosso País possa sentir-se como artífice dos destinos que a todos nós diz respeito.

Lisboa, 2 de Fevereiro de 1981