quinta-feira, 1 de julho de 2010

O IMBONDEIRO

Em 1959, o Henrique reúne, num pequeno volume intitulado «Os Meus Primeiros Passos», contos, ensaios, reportagens e discursos já anteriormente publicados ou no jornal A Huíla, no Lubango, ou no Diário Popular em Lisboa, num período que vai de fins de 56 a fins de 58.
Editámos já no Ouvidor do Kimbo o discurso proferido a 10 de Junho de1957.
Com o Imbondeiro começaremos uma série de contos.
Curioso como, não sendo um conto autobiográfico, o Henrique se confunde, se identifica, se solidariza com o «Quasímodo» e se torna seu amigo na desgraça e na solidão.


«IMBONDEIRO»

«Ele é o único senhor e rei da vastidão incomensurável da «chana» sem «capim». Por ali vive só, acabrunhado e solitário mendigo, abarcando, com um olhar de desolação, o horizonte sem fim dos seus domínios.
Não tem amigos nem irmãos! Pobre que ao mundo veio num dia de triste sina, aziago como feitiço, não quiseram os fados embutir-lhe no tronco descaído uma pequenina parcela de alma sentimental. Por isso dizem, é bruto, malcriado e estúpido!
Mas ele sofre coitado! Nos braços rugosos e carcomidos pelo tempo, mostra, altivo e arrogante, as feridas e chagas das contendas e das batalhas.
Outrora, quisera também ser igual a tantos outros, que sentiam a seiva quente a latejar nos ramos farfalhudos… E lutara com denodo e energia. Endireitara o busto vaidosamente, lançando as hastes por cima da ramagem virgem, e clamara bem alto: Eu quero …eu quero!... Num eco a voz galgou montes e valados, levando para longe o grito desesperado do rebelde.
Os outros miraram-no com compaixão e tristeza, fitaram com nojo o seu porte grotesco de Quasímodo, e viraram-lhe as costas, como se repulsa lhes provocasse o pobre imbondeiro sem família.
A princípio, na brutalidade crassa que o distingue, não alcançou a ofensa de que fora o alvo tentador…. E continuou a gritar com fúria arrebatada, num desejo incompreensível de lutar e vencer, apontando com os dedos descarnados, a tentação mirabolante que o seduzia “ Eu quero… eu quero!...
Entorpecera-se-lhe o cérebro de ideias loucas e extravagantes. O crepúsculo esbatia-se em pinceladas suaves, tingindo a terra de uma aguarela avermelhada, enquanto no céu cavalgavam as primeiras sombras da tormenta. Mas, nesse poente ensombrado, tudo se tornou num mundo diferente e irreal. Sonhou embevecido, com o paraíso de eterna felicidade, com a bonança dos bem aventurados, com o amor caprichoso…
E sentiu-se leve e imaterial. Esqueceu as maldições do destino, a iniquidade da vida, o seu talhe tosco e grosseirão, a avareza dos que o tinham repudiado. Cresceu e inchou-se para o ar, ergueu os galhos destorcidos e curvados, e voltou a bradar com júbilo potente, feroz e brutal: “Eu quero… eu quero!... Mas a voz sai-lhe, agora, enrouquecida, num murmúrio moribundo, que se afoga aos poucos… Compreende que ele, a árvore sarnenta da floresta, não tem direito à vida. Será um proscrito, um eterno vagabundo esfomeado a quem se nega a côdea suja de pão, e a água que mata a sede.
Pelos galhos abatidos do imbondeiro, correm lágrimas sentidas… deixa pender a descomunal cabeça para o chão, e assim se queda carpindo as mágoas que o queimam…
Hoje não tem amigos! Banido para sempre do convívio dos seus semelhantes, aí ficou na “anhara” despovoada, sem ninguém que o console nas horas intermináveis de saudade.
Quantos anos terá? É uma alma morta… apenas a ”tchiri-tchiri, abelhuda enganadora da selva angolana, lhe traz, de quando em vez, as novas desse mundo ímpio que o desiludira.
Mas não merece a pena chorar imbondeiro! Eu sou teu amigo. Companheiro na desgraça desgarrada, também eu rogo por uma gota de água límpida. E eu não choro amigo. Sei sofrer em silêncio. Vamos imbondeiro, olhemos de alto essa indiferença e finjamos pelo menos, que sorrimos quando a alma sangra. Limpa essas lágrimas rebeldes que te escorrem pelo tronco cansado. Terás a teu lado alguém, que sofre tanto como tu!
Somos irmãos em tudo, imbondeiro!!!»

Publicado no Jornal “A Huíla” em 27 de Junho de 1957. Sá da Bandeira Angola