«A Bailarina foi publicada, sob pseudónimo no Jornal A Huila (Lubango antiga Sá da Bandeira) 1956? 1957?
Também para o Henrique, no inicio de um projecto surgia um período de incerteza - será que vou ser capaz? Dúvida fugaz, transitória. No horizonte - a tarefa que se desenhava, a concretização da utopia sonhada, a entrega total. Como a bailarina."
A Bailarina
Em poética silhueta do poente, ela entra no palco desconhecido, pisando de mansinho o tablado, enquanto, a medo, a esbelta figura se requebra em passos de harmonia.
Ofuscada pela luz de focos encerrados em câmara escura, a bailarina ergue-se na ponta dos pés pequeninos, e calca o chão em rodopio delicado e saltitante, airosamente recortada, na trágica alegria do momento, pela veste de tule branco, debruado a lantejoulas.
Receosa, o busto arfando em palpitação subtil, ela olha o público mordaz que a fixa em silêncio reprovador de juiz; e os pés, atropelam-se grotescamente em precipitação atabalhoada, que arranca murmúrios abafados de pateada.
Desdobrado, sobreposto em « onduleio» de serra, o divinal corpo de mulher agacha-se lentamente, até beijar o soalho iluminado da ribalta silenciosa. E a bailarina chora…Estática, braços rígidos, sem o calor da excitação, sente as lágrimas borrarem-lhe o traço preto da maquilhagem…Olhos sem vida na plateia de cabeças poisadas com apatia, ouve a suave sinfonia do ballet tocado por figuras de traje negro, que lhe lembram espectros ridículos em desafinamento. Envergonhada, precoce timidez reflectida no peito receoso, agarra nervosamente o modesto crucifixo de ferro e os lábios sussurram uma oração que há muito ela houvera desprezado: «Ave-Maria, cheia de graça»…
E as ondas dos projectores varrem em turbilhão o palco longínquo, cenário irreal de pureza, onde cresce o feto da inocência de um mundo diferente, paraíso da música que ela quer dançar. Livram-se os pés da imagem da emoção, cavalgam em marcha sem horizontes, descontraídos e indomáveis no rodopio desvairado do espectáculo. E a bailarina baila…
Estranha deusa nimbada pela louca alucinação dos acordes, os braços voam em contorções orientais, meneiam-se e afagam suplicas, acariciam o rosto de alguém que já não volta, saracoteiam-se em traços vincados de fascinação; e arfando em viravoltas desprendidas, a bailarina corre o estrado de ponta a ponta, desenhando na maneira empoeirada dos bastidores, exóticas figuras para o desconhecido, que só ela entende no grácil delinear do seu vestido.
E para ela não há terra nem céus, nem cor e luz, nem recordações de um vulto de homem que não esquece: só se avoluma o ritmo inconsciente do fascínio, que fica a perdurar no mavioso bater das notas do piano, enquanto braços, pernas, e a sombra do próprio corpo, arrancam o véu tirano de destino para dançarem até ao fim…
Incendiada no fogo vivo da sua musica, o corpo cansado contorce-se dolorosamente no último suspiro do ballet. E na reverência sonolenta do acabar, a bailarina ajoelha, comovida.
Em vagalhão clamoroso, a plateia aplaude de pé, freneticamente... E na ribalta, atapetada por flores brancas de ventura, jazem, da endiabrada bailarina, as duas sapatilhas de veludo.