segunda-feira, 19 de julho de 2010

DEUSA ANGOLA

Surge-me, recostada em figura de poetisa e cavaleira errante, trajada de coqueiros de verde garrido, a deusa estranha e misteriosa do amor e da aventura: ANGOLA, berço rendado de mártires-santos e heróis –guerreiros, solar ancestral de monges celibatários, fecunda universidade de jograis e academia sem rival de musas e liras, trovas e poemas de ilusão!
Ostenta, por diadema refulgente, da sua coroa o braço luzidio do negro escravo, que no campo arrasta ainda a corrente da grilheta, ao som do soar lamentoso da sua renuncia de sujeição… E a boca sensual da minha deusa, curvilíneamente arredondada por dois grossos lábios de um Morro Maluco, entoa também, no silêncio sepulcral de uma noite luarenta, o cântico triste e dolente da magia do seu batuque…
Já os olhos negros e profundos, que no Zaire e no Zambeze beberam as lágrimas doloridas da saudade, se semi-encerram, sonolentamente, ao devassarem o emaranhado agreste do Maiconde colorido; e nas pérolas transparentes, que deslizam das pálpebras lacrimosas, lêem-se promessas sem fim de lendas e fantasias, prisioneiras nos areais longínquos da Baía dos Tigres!
No colo macio da sua pele morena, refulge um rico colar de diamantes que a Lunda desentranhou; e nos dedos esguios e sedosos dessa deusa do Poente, há anéis congoleses de café torrado, missangas de Massango, feijão e milho, conchas esmeraltinas e búzios do atlântico enamorado !
Calai-vos que a rainha dorme! O leito repousante é o capim seco e rastejante das anharas infindáveis do Moxico, e para abanar-lhe o rosto da cor do negro ébano batem palmas as palmas das palmeiras, padrões solitários erguidos na faixa lambida da ilha de Luanda! Ao lado, incolor bebida do esquecimento, entorna-se uma cabaça por sobre a esteira de palha piolhenta; e na mão comprida e acetinada, a deusa Angola empunha o ceptro arrebatado, em sangue e choro, nas praças empedradas da Muxima e Massangano! Os pés, escondidos nas cavernas de um Jau do sul, envolvem-se em peles sarapintadas de onças e surucucus, pendendo, preguiçosamente, sobre as trombas gigantescas de dois elefantes do Cunene aguado!
A chama fumarenta da carapinha de lianas e mutalas – toucada, graciosamente, no largo almofadão de uma Jinga derrotada- deita-se em penas de avestruz de Moçâmedes e dos Bundas, enquanto as longas pernas de feiticeira desconhecida se moldam desejosamente, sob a tanga acinzentada do nevoeiro de uma Chela altiva! E ao pé dos dedos, tilintando em acordes de oboés, há argolas e correias gentílicas que o Bié de Silva-Porto ofereceu em homenagem à soberana da sua embala empalhotada!
E a deusa dorme!...Em seu sono de tradição, há lendas de caravelas arrojadas, que grandes mares tornaram num só único, contos de sobas e régulos traiçoeiros, epopeias de amargura e de bravura, escritas pela ponta de uma espada de lamina tinta; e nas pestanas de cílios amorosos, existe um livro de sonetos e poemas, baladas pungentes de histórias que não morrem, esperanças de um D. Sebastião que há-de chegar num dia de sol radioso, para a erguer do seu leito adormecido!... e na sua sonolência preguiçosa, a deusa Angola chama baixinho pelo cavaleiro andante dos seus sonhos, de elmo rebrilhante e armadura refulgente, que no dia da Ressurreição a levará, trajada de branco noivado, ao altar erguido nos pináculos da Glória!!!
Dorme e sonha Deusa Angola! Sonha e dorme que eu vigio o teu turpor de letargo hibernal! Terás a teu lado, eternamente, chorando quando tu choras, gargalhando quando ris, a sentinela vigilante do coração pequeno de um angolano!
E àqueles que passarem, troçando, e perguntarem pela minha vigília de sempre eu responderei ao grito, com o bramido: «Sentinela, Alerta Está»!!!

Lubango, Sá da Bandeira, 13 de Março 1957