quarta-feira, 23 de junho de 2010

O Quadro

Este conto nunca foi publicado. A imagem que suporta o texto, é um esboço de um rosto de mulher, feito pelo nosso 3º filho, o Nuno, em 1992, conforme se vê pela rubrica no canto inferior esquerdo



Enervado, o homem proferiu uma blasfémia e jogou o pincel de encontro à tela, que se encheu como por milagre, de miríades de borrões coloridos. Lentamente a tinta deslizou pelo papel grosso e, pingo a pingo, tombou no chão, marcando regos estrambólicos no soalho rachado do quarto…
Com uma apatia exasperante, o homem quedou-se ainda um momento frente ao conjunto bizarro; depois, virou costas com um gesto de indiferença desdenhosa e deixou-se cair em cima da cama desfeita, que gemeu ao peso do corpo. Alheio, puxou do maço de cigarros e alisou a madeixa de cabelos negros, expirando, distraidamente, argolas de fumo azul, que se diluíram, aos poucos, no vácuo do ambiente…
Na imensa solidão da noite, ouvia-se o tic-tac, monótono e desesperante, do relógio de cabeceira, batendo, de segundo em segundo, as notas sempre iguais do pendular; e as pulsações enfadonhas do maquinismo contundiram-lhe com os nervos e fizeram-no dar voltas sobre voltas, até ficar deitado de borco, mirando de esguelha o quadro borrado.
Erguida sobre um cavalete de pernas altas, a pintura desconexa pareceu-lhe, à luz mortiça da lâmpada, uma bruxa feia, de guedelhas espalhadas sobre a moldura! Com os olhos semi-cerrados numa modorra tediosa, ele ficou quieto, embrenhando-se nos seus próprios pensamentos, de que apenas se desviava para olhar a tela suja, que o atraía e o arrastava para um mundo diferente daquela realidade de pintor sem glória! E o homem mordeu os lábios ao recordar o seu vulto cabisbaixo percorrendo vielas, no propósito desesperado de vender as suas obras por um preço qualquer! E ele teve garras de gritar a aflição que o torturava por ver a sua arte incompreendida; e bateu com os punhos na borda da cama, ao avistar despontando da moldura o quadro incompleto cheio de traços hesitantes e desarticulados.
Furioso, nem deu conta que o cigarro lhe queimava os dedos. E ao vê-los mexerem-se nervosamente como tentáculos o homem encheu-se de um orgulho momentâneo levantou-se precipitadamente agarrou as bisnagas de tinta e com um entusiasmo febril misturou-as no tampo de ensaio. E aos poucos, enquanto o pintor num ritmo ziguezagueante misturava os pasteis coloridos, avolumava-se no bastidor do panorama a sombra angélica de um rosto de mulher; e no momento de entusiasmo mórbido que o conquistava ele não sentia o badalar das horas ininterruptas e, excitado só fixava a tela que enchia de traços e sulcos suaves, de uma figura serena e correcta. No pequeno tablado do teatro do pintor define-se de pincelada em pincelada a personagem central do acto; hipnotizado rasga-lhe os lábios, pintalga-lhe as faces de um carmesim discreto enruga-lhe a tez num trejeito pensativo, brinca-lhe com as mãos e sombreia-lhe uns olhos tristes e profundos, sonhadoramente enamorados do infinito; e vagamente, num apelo longínquo que lhe fere a alma, experimenta a doce sensação dos olhos acastanhados da mulher retrato a chamá-lo para o amor. No pátio, um galo cantou a alvorada e acordou-o do seu marasmo…Na luz coada e álgida da mansarda sobressaía, sobre o cavalete a sua obra prima de pintor! No pátio de lá de baixo, o canto do galo voltava a soar.


Angola 1957