sexta-feira, 4 de junho de 2010

Os amigos e as pedras do caminho

Desde miúdo, tive a sorte de arranjar um grupo de amigos verdadeiros pelas terras onde vivi. No dia em que deixei Vila Luso, houve uma récita no teatro, em que, como habitualmente eu entrava.
Sabes o que aconteceu? O comboio em que iria para Nova Lisboa saía de Vila Luso às 23.30. Isso não impediu, claro, que eu fosse cumprir a parte que me respeitava.
Nunca esquecerei. O último número em que entrei, foi para recitar o “Brazão” de A. Botto. No final, não fazes a mínima ideia, do autêntico delírio que foi! Simplesmente fantástico! E eu, nessa altura era um petiz de 12 anos, de cabelo lambuzado de brilhantina e calções pelos joelhos.




De pé, todo o público – e o teatro estava cheio – me aplaudiu de tal maneira que eu tremia de medo e não de satisfação, de medo que eles se lembrassem de subir ao palco e me asfixiassem!
Criancices de então! Mas, quando tive de ir para a estação, não houve um único amigo a quem eu pudesse anotar falta de comparência.
E ainda hoje me recordo que houve pessoas muito mais velhas do que eu, homens especificamente, que choraram abraçados a mim. Pais e chefes de família não iriam chorar sem mais nem menos! E choraram que eu lembro-me bem!
Depois eu cresci, novos amigos arranjei, novas terras vi – mas nem por isso, nem por ter deixado de ser criança, e não obstante o tempo e a ausência, nem por isso eles deixaram de ser meus amigos e eu deles. Ao ler as cartas que me escreveram lá de tão longe, após uma separação que vai quase para seis anos, eu “sinto” que para eles, eu não deixei de ser o “Rique” o amiguinho que não esquecem nunca e que têm realmente provado não esquecer.
É isto a que chamo Amizade. Dessas tantas e tantas pessoas de que eu te falo, nem uma só me deve favores (que favores se podem ficar a dever a um garoto de 12 anos?), nem uma só tem obrigações de me escrever, de me incitar, de me mandar conselhos e fotografias para que a ausência não seja tão grande. E todavia eles sempre arranjaram tempo para, no meio dos problemas que certamente devem ter, roubarem uns minutos ao trabalho e me mandarem a certeza da sua presença e amizade.
Quando falo de Angola com uma saudade inapagável, com um fervor inalterável, é porque, sem dúvida, além de ter a prova de que lá tive amigos, tenho também certeza da continuação desse sentimento



Sabes um dos motivos porque tanta gente adulta sempre gostou de mim? Diziam eles que, de uma forma que sempre me envaideceu um pouco, eu era um “miúdo excepcional”, por saber manter, tão novo ainda, sempre a mesma linha de conduta, ferisse a quem ferisse e, sobretudo por de novo ter ideais que nunca modifiquei completamente.
Havia, portanto, uma comunhão de ideias e sentimentos que me fizeram nascer amizades que o tempo não me faz, nem fará, esquecer. E é nessa comunhão de ideais, nessa continuação do mesmo rumo de pensamentos que eu encontrei a força para não desiludir os meus amigos adultos.
Hoje, também eu sou um pouco adulto.
Modifiquei-me? Não! Nunca!
Que interessa que eu com 12 anos andasse de calções e agora vista calças e gravata? Que interessa que eu aos 12 anos não fumasse e agora fume? Que importa que eu, então quando assistia a uma missa o fizesse com devoção e que, agora, me distraía de vez em quando a olhar para uma garota “gira”? Não, isto são pormenores secundários, que se alteraram com o rodar dos tempos.
Os meus ideais, meus sentimentos, as minhas convicções, a minha conduta, tudo isso é que, sim, nunca modifiquei, nem quero modificar.
Que interessa que nós percorramos um caminho traçado com força de vontade – descalços, de sandálias ou de sapatos? Tanto faz! Se esse caminho de qualquer maneira, nos conduzir a uma só saída, a uma única saída, as pedras do caminho tanto podem ser calhaus como pedregulhos!!!
São exemplos que me ocorrem de momento, mas são exemplos que servem para demonstrar que o aspecto exterior, os ornatos secundários, não influenciam ponderosamente na nossa linha de conduta.
Sim eu quero e gosto de ser duro quando vejo que tenho razão para o ser .

Lisboa, 1957