domingo, 1 de agosto de 2010

O Maneta

A passos lentos o homem subiu a escadaria de mármore branco, e abriu a pesada porta de carvalho, que chiou tristemente nos gonzos enferrujados. Na penumbra álgida da grande sala cheirava a bafio, e as poltronas estavam cobertas por lençóis brancos; do tecto despontavam, triunfantes miríades de teias de aranha, e ao centro erguia-se uma mesa rectangular coroada de cinzeiros a abarrotarem de beatas esmigalhadas. Apático, o homem deu meia volta nas botas cardadas, e fechou a porta com lentidão.
Cá fora caíam os primeiros pingos de uma chuva miudinha e irritante, que o obrigaram a aconchegar-se melhor na gola felpuda do dólmen de oficial; e mirando as luzes que se acendiam repentinamente, na rua erma, sentou-se cansado, no parapeito da varanda, riscando um fósforo que lhe iluminou o rosto másculo. Foi então que a medalha de ouro, pendurada ao lado esquerdo do peito, cintilou estranhamente sobre o bolso largo e lhe arreganhou as faces num sorriso de desprezo. Indeciso tacteou-a a medo, com a única mão que lhe restava da aventura de uma guerra, e desprendeu-a do tecido grosso da farda, espalmando-a sobre a pele rugosa. O ouro, faiscando na semi-escuridão em cintilações deslumbrantes, contrastava singularmente com a mão calejada, onde as unhas, sujas e roídas, se assemelhavam a borrões de tinta em papel pardo! E o homem quedou-se a fitar apalermadamente, o estranho conjunto dos cinco dedos da mão, disformes e papudos, com as cinco pontas em estrela, da condecoração. Esquisito contraste de reminiscências, unido indissoluvelmente no destino escabroso da sua vida! Pensativo, franziu as sobrancelhas numa curva harmoniosa, e fez saltitar a medalha pausadamente… Mas raivoso, comprimiu-a, depois, na mão fechada, com uma terrível gana de a esborrachar lá dentro, como se fosse pasta de chocolate!
Dos campos de batalha voltara aureolado de uma onda de glória, no peito ostentando com orgulho desmedido, a maior distinção jamais conferida a um soldado: uma insígnia de cinco pontas doiradas! Mas do lado esquerdo do corpo do homem faltava qualquer coisa: um braço de carne! Desfeito por uma granada, voara num ápice de um minuto, restando-lhe agora um coto monstruoso e grosseirão que o fazia corar até à medula dos cabelos.
Maneta… Um horrível maneta que os outros apontavam chocarreiramente, comparando-o a um espantalho desarticulado que apenas servia para amedrontar pardais; um abjecto manequim, impossibilitado de se apresentar condignamente na sociedade, com aquele vulto esbelto e elegante que outrora passeara como rei, pelos salões engalanados! Tristemente, mordendo os lábios que já tremiam, o homem fitou a outra mão, irmã gémea da despedaçada: cinco unhas porcas e mal cuidadas! Teve nojo e cuspiu saliva para o chão! Tinha sido um herói por perder a mão em combate de bravura, e o mundo em peso aplaudira-o com fanatismo: mas ficara maneta para toda a vida, e a noiva troçara dele sarcasticamente, trocando-o por um boémio de vida airosa. Coisas da guerra afinal… decerto que ela, apesar de ele ser um valente e ter uma medalha de oiro, não o queria assim feio, com uma mão única parecida com a de um carroceiro. Azar! Estúpido azar o seu!
O cigarro lançado com fúria de besta para o ladrilho da varanda, apagou-se lentamente…Na rua continuava a mesma chuva impertinente e irritadiça pingo a gota gota a pingo…
E o homem sentiu as lágrimas correrem-lhe quentes e saudosas, pelo rosto enegrecido ao sol…
Teria valido a pena ser herói? Olhou de novo para o lado esquerdo. aquele pedaço de carne cicatrizada parecia-lhe uma bola de trapos cozida, daquelas que os garotos se servem para dar pontapés ao domingo! E teve ganas de saltar o muro e correr desvairadamente, para perguntar ao mundo se a ilusão de uma noiva e de um braço rasgado, se pagava com um enorme medalhão de honra. Mas impotente, calcando bem fundo a tragédia do seu destino o homem entreabriu os lábios num sorriso de ironia e assobiou com menosprezo absoluto. Ele o herói que não conhecia o sabor amargo da derrota, seria superior até ao fim… E talvez que pudesse vender aquela medalha de cinco pontas, e comprar um novo membro: um fino braço de galante aristocrata, com unhas polidas e maravilhosamente pintadas!

Publicado no Jornal «A HUILA» em 27 de Junho 1957