sábado, 19 de fevereiro de 2011

Intervenção do Dr. Vitor Ramalho

Encontramo-nos hoje no Conselho Económico-Social para evocar – e justamente – o Dr. Henrique Nascimento Rodrigues, primeiro presidente desta instituição eleito pela Assembleia da República em 1992 e que a marcou de forma profunda.

Coube-lhe definir os objectivos estratégicos, constitucionalmente tutelados, dinamizá-la incluindo nas relações com instituições estrangeiras congéneres e cooperar para a criação de organizações de concertação social nos países africanos lusófonos.

Tenho bem presente que o próprio edifício onde ainda hoje funciona a sede do Conselho Económico-Social foi por ele muito desejado, retirando-o das velhas instalações do Campo Pequeno, em Lisboa, onde funcionava o Conselho Permanente de Concertação Social.
Não posso por isso deixar de saudar a homenagem que o Senhor Dr. Silva Peneda, actual presidente do CES em boa hora entendeu dever ser-lhe feita, na instituição que tanto ajudou a cimentar e dignificar.
Honrou-me muito o convite que me dirigiu para tomar a palavra nesta sessão.

Fui amigo do Dr. Nascimento Rodrigues, como eu natural de Angola e também como ele vi-me na adolescência, período que na vida de todos nos motiva aos sonhos, feito embarcadiço num paquete que tinha por destino Lisboa.

Deixámos então para trás o caldo da experiência de vidas em flor alimentadas por um cheiro especial de terra férrea, de gente desgravatada, que vivia em espaço aberto e onde o horizonte ao fim do dia punha uma bola de fogo no céu e as gentes dançavam com batuques que ecoavam sons ritmados nas noites.

Viemos para iniciar a licenciatura na Faculdade de Direito, inexistente então em Angola, quer no seu tempo quer no meu. Tínhamos uma diferença de cerca de sete anos mas foi a origem comum que em lisboa nos fez convergir e comungar uma forte amizade que persistiu até ao fim dos seus dias.

O Nascimento Rodrigues nunca perdeu esse forte cordão umbilical à terra angolana, dando testemunho vivo de que não é possível renegar-se a mãe porque é esta que está na nossa origem. Não apenas no sentido biológico do termo mas também da terra que nos forja o que somos.

Ele foi essencialmente um homem do Kimbo, a urbe formada por um aglomerado de senzalas
nas terras africanas. Foi no enquadramento dela que nasceu o ouvidor que sempre foi. Um ouvidor do mundo e atento ao seu pulsar.

Quando a sua mulher me falou no seu blogue “o ouvidor do Kimbo”, de que a família está – e muito bem – a dar-lhe continuidade, não deixei, apesar de me considerar um infoexcluido, de me comover pelo que nele vi, li e ouvi, face ao retrato de um homem bom e culto que tinha uma pátria maior, feita de muitas pátrias e que se expressam pela mesma fala comum. No “ouvidor do Kimbo” há aqui uma poesia, além um encontro na anhara com o pai e com o amigo também angolano Acácio Barreiros, mais à frente uma nota política, depois uma reflexão que é resultado de encontros múltiplos do cidadão do mundo, ainda outras marcas assinaladas pelas pinturas quentes da sua África, enquadradas por vozes que cantam músicas da nossa fala e no meio de tudo artigos, crónicas, relatos e apontamentos trabalhados com muito cuidado desde a juventude até ao termo dos seus dias.

Há ainda a família alargada pelos cinco filhos que teve, cimento de afecto, como se lê nas cartas saudosas ao avô do neto que o viu partir ou dos filhos que o lembram.

Não! Nascimento Rodrigues não foi só o eminente jurista laboral que após a licenciatura ingressou na função pública, dedicando-se ao direito do trabalho e servindo naquela ou mais tarde em profissão liberal, o vasto mundo do trabalho e em particular dos trabalhadores, pugnando pela liberdade sindical e tomando parte activa na construção do sindicalismo livre e neste da UGT.

Não foi também apenas o parlamentar distinto, eleito pelo seu partido de sempre, o PSD nos idos de 80 e presidente da comissão de trabalho da Assembleia da República, ou Ministro do Trabalho do VIIº governo Constitucional, nem sequer o dirigente da troika, do PSD, com Mota Pinto e Nuno Rodrigues dos Santos em que num período complexo da vida do partido assumiu, nele, as mais altas responsabilidades.

Nascimento Rodrigues beneficiou por mérito – e justamente – do reconhecimento profissional e político em diversos momentos da sua vida. Daí o ter sido chamado também para outro cargo electivo que, como o de Presidente do Conselho Económico e Social, impõe uma maioria alargada de 2/3 dos deputados do órgão de soberania que por excelência representa o povo português, no caso a Assembleia da Republica. Refiro-me ao cargo de Provedor de Justiça que exerceu ininterruptamente durante nove anos, de 2000 a 2009 com a proficiência, dignidade e isenção de todos conhecidas.

Em tudo o que serviu, Nascimento Rodrigues teve um fio condutor coerente, legitimando por isso a eleição para a presidência da Conferência Internacional do Trabalho em junho de 1992 com forte apoio dos chamados países do Sul, entre os quais todos os lusófonos.
Estas mesmas razões estiveram na base direcção do projecto Prodial, a convite da OIT, da promoção do diálogo social na fase de implementação em Cabo Verde e em São Tomé e Príncipe, ou da eleição como vice-presidente da Federação Ibero-Americana de Provedores de Justiça no biénio de 2004.2005.

Ele foi tudo isso, mas não apenas isso. Já referi que sempre o senti sobretudo como um ouvidor, qualidade reservada para os eleitos que sabem pacientemente escutar, prova real de respeito pelos nossos semelhantes, mas com o objectivo de exercerem uma influência transformadora, suportada em princípios e valores, no caso os da liberdade, dos direitos sociais e sindicais, da dignidade do trabalho, da igualdade, da amizade para além das opções pessoais, do diálogo, da concertação, da isenção na avaliação dos factos e das ideias, sem nunca renegar as suas convicções.

O fio coerente da sua acção, alicerçado e alimentado pelo espaço sem fronteiras da terra onde nasceu, mesclada por uma realidade cultural policroma e pela convivencialidade que teve e manteve na pátria das pátrias comuns que o acolheu, deu-lhe uma pertença múltipla e a noção clara da afirmação de Portugal no mundo – a lusofonia, esta mais valia que está muito para além dos interesses económicos do imediato e que se teima em não compreender restringindo-a a estes.

Neste mundo hoje hedonista em que não há só uma crise, mas várias, entre as quais a crise ética, que afecta valores e princípios, Nascimento Rodrigues, que deixou de poder pensar e de estar connosco não passou ainda um ano, é uma personalidade que reflectia muito e tinha a noção exacta do rumo de marcha que deveria ser prosseguida por Portugal.

Tive o privilégio de, ao ser seu amigo, e de sempre me cumprimentar com um sorriso largo invocando um termo angolano de um povo bantu, o ouvir falar muito sobre o que pensava desse rumo, e ainda sobre a necessidade de termos de saber alargar a base da consensualização estratégica de desígnios nacionais, para além da transitoriedade dos governos, o que persistimos em não querer ver, com as consequências que hoje estão à vista de todos.
Neste momento, aqui e agora, face à dimensão dos problemas que se deparam como povo e como país esta parece-me dever ser a essência do que lhe deve ser imputado como pensador mas também como homem de acção.

As nossas diferentes opções partidárias nunca nos impediram de partilharmos a enorme importância de se consensualizarem desígnios nacionais comuns e do que representa a lusofonia.
Os cargos e lugares por onde Nascimento Rodrigues serviu foram instrumentos de uma vida coerente, forjada em ideias claras que tiveram sempre por base o serviço ao bem comum objectivo que efectiva e racionalmente nunca abandonou – repito porque nunca é demais – a ideia de um Portugal moderno e eficiente e de progresso solidário, suportado numa concepção universalista e tolerante.

Face à magnitude dos desafios que hoje se deparam e que não poderemos deixar de ultrapassar, esta homenagem pode e deve ser também um momento de reflexão para todos sobre a necessidade de, na nossa terra fazer prevalecer o político sobre o económico como também o homenageado defendia.

Para o efeito é muito útil e proveitoso que vejamos, ouçamos e leiamos o ouvidor do Kimbo no blogue com o mesmo nome. É o maior tributo que lhe podemos prestar. Bem haja à sua família por o ter preservado e a quem cumprimento com muito respeito,
Muito Obrigado.