sábado, 6 de outubro de 2012

A MEMÓRIA TEM DESTAS COISAS

A memória tem destas coisas! O adolescente que escreveu este belíssimo texto, seria, 50 anos mais tarde, Provedor de Justiça. Ao recordar-me dos seus dois mandatos, do modo como os exerceu, da sua renúncia, vem-me, necessariamente, à memória, toda a construção da sua essência! Há pessoas que não podem ficar esquecidas.

IMBONDEIRO

É uma alma morta.
Outrora,
quisera ser igual a tantos outros,
que sentiam a seiva quente
a latejar nos ramos farfalhudos…
E lutara com denodo e energia
para arrancar o seu pão de cada dia.
Endireitara o busto vaidosamente
lançando as hastes
por cima da ramaria virgem, e clamara bem alto:
Eu quero… eu quero!...
Num eco
a voz galgou montes e valados,
levando longe
o grito desesperado do rebelde.
Mas ele sofre coitado!
Nos braços rugosos e carcomidos pelo tempo
mostra altivo e arrogante
as feridas e chagas das contendas e batalhas.
Na torreira das tardes calorentas
com as raízes inertes,
esfarrapadas sobre solo árido,
sozinho,
gemeu,
e gritou
pela simples gota de água,
que, lhe mitigasse a sede abrasadora.
Mas nem a mãe natureza lhe dera importância.
E vira
o caminhante esfalfado passar-lhe ao largo
como se fosse um miserrável
andrajoso
abandonado por todos.
Pobre Imbondeiro!
Não merece a pena chorar.
Eu sou teu amigo.
Companheiro na desgraça desgarrada,
também eu rogo a gota de água límpida
que me mate a sede.
E eu não choro amigo.
Sei sofrer em silêncio
a chama que golpeia o peito miserando,
calcar bem fundo o desprezo e o ódio
que me atormentam noite e dia.
Vamos imbondeiro.
Olhemos também de alto
essa indiferença
e finjamos pelo menos
que sorrimos
quando a alma sangra.
Limpa essas lágrimas rebeldes
que te escorrem pelo tronco cansado.
Terás a teu lado alguém
que sofre como tu!
Somos irmãos em tudo
Imbondeiro

26 de Junho 1957

Que seria de nós se não tivéssemos memória?... Esqueceríamos as amizades, os nossos amores, as nossas lutas, os nossos trabalhos. (…) A nossa existência reduzir-se-ia aos instantes sucessivos do momento actual, que foge sem cessar. A nossa vida é tão vã que, no fundo, ela não é mais que o reflexo da nossa memória”.
Chateaubriand