Depois molhando os lábios acrescentou:
- Compadeceu-se então Líbua, a filha do soba, e em voz baixa fez-lhe um convite:
-“Vem comigo, oh mâma, que eu te oferecerei de comer e te darei de beber. Anda vem!”- e pegou-lhe na mão e conduziu-a à sua cubata. Aí, Nha Caçola – ouvis! - encheu a barriga até se fartar e bebeu de “meia” que ficou como uma bola. Saciada assim, acocorou-se a pensar, a pensar, a sua fala roufenha acabou por encher o silêncio em que estavam as duas.
-“Ouve, Líbua- começou a velha – antes que um novo sol tenha nascido no céu, será esta terra coberta por tanta água, tanta água que não haverá feitiço capaz de bebê-la. Ficará aqui um lago, Líbua, um lago belo, cuja história os negros hão - de contar quando os anos forem velhas. Mas tu foge, Líbua, foge antes que a ira dos deuses desça à terra.”
- e dito isto em tom rápido, Nha Caçola despediu-se e desandou.
-E depois, oh Buala, e depois?
-Esperai, gentes, que eu já vos digo.
Ficaram quietos, aguardando. Leve, porém, a voz do contador se elevou acima da canção do quissanje:
- Veio a noite sobre a banza de Iunculo- Mbebe. Os homens, cansados, estenderam-se sobre as esteiras, junto aos tchingilos, e ficaram-se, sonolentos, a mirar os longes sem viração da terra. Nem um sopro de vento açoitava o ar, oh gentes, e na châna rasa não bulia ruído. Tudo quieto – percebeis - quando num repente, - seria o Cazumbir, oh gentes?
Os homens ergueram-se de um salto, as mulheres pararam de mexer a comida e as crianças correram a agarrar-se às pernas das mães. Uma voz mais retumbante que o rugir do dumba pusera o povo de corpo tremente.
- Mais forte que a voz do dumba, Buala Nambuco?
-Sim, sim, gentes, muito mais forte.
E de quem era?
-De Nha Caçola, a chamar por Calunga – e Buala Nambuco pôs-se de pé, agitou os braços e imitou:
-Calunga! Calunga! Tu, senhor dos céus e deus sobre os deuses, manda teu feitiço infernal para castigar o povo de Iunculo- Mbebe . Um povo rico, oh grande Calunga, que nem me apresentou uma mão de funge, nem um resto de água. Calunga! Calunga! Arrasa esta terra farta e sepulta os seus homens maus – e o quissange do velho Nambuco gemeu, logo, sob os dedos ágeis que o apalpavam. Notas vigorosas rebentaram. E o povo, de olhos abertos, escutou ainda:
Foi uma grande desgraça, oh gentes. Líbua salvou-se, mas nenhum homem mais escapou à ira dos deuses. Nenhum homem. Os ares encheram-se de fogo e a terra chupou água, chupou água, tanta chupou que a terra se ficou em água. Alagaram-se os campos e morreram as gingubas. Caíram as árvores e as pedras sumiram-se afundadas. Pôs-se o céu escuro de dia e de noite vermelho. Até que quando os trovões já iam longe, um lago grande, de águas azuis surgiu no lugar da antiga libata de Iunculo- Mbebe.
- O Lago do Feitiço!
Sim gentes, o Lago do Feitiço!
- Aiué, tatué!
- Aiué…é…é…é…
Enche-se o ar da cubata de um rumor de palmas e gargalhadas. Ninguém pensa já na volta de Tala Mutebe, nem nas angústias do povo. Agora os rostos luzem e os olhos estão abertos, mais abertos a cada vez que o marufo se espicha pelas goelas. Lá fora, um cão furou o profundo silencio da noite. A lua, da cor do milho assado, espreitou pela janela de uma nuvem e cobriu a banza de um manto prateado. Depois, outra nuvem veio, que tapou a lua. Na cubata de Buala Nambuco, os pretos sonham. E o vento do mato anda por ali a macaquear, enchendo a alma do negro de medos e fantasias, fantasias e medos que hão-de passar de geração em geração, porque pobre é o povo sem histórias que contar e que sonhar…
FIM