Buala Nambuco era o velho mais velho da senzala. Já tinha mesmo, perdido a conta das luas corridas desde o dia em que, muâna, fora com seus irmãos de raça cumprir o rito da circuncisão. Ficara homem. E, de então até quando topara caruncho nos vimes das pernas, Buala Nambuco – ora pois! – vivera coisas invulgares e carreara aventuras de arrepiar .
Era do tempo em que os bichos comiam os homens e os pretos andavam em guerra com os brancos vindos de longe. Ah, sim! Buala Nambuco era um velho que tinha “muito esperto mesmo no cabeça”. Uma vez, ainda seus braços eram tão fortes que podiam suster-se noites a fio de azagaia tensa, ele lobrigara sozinho, na quebra da picada, com dois foliões, useiros na roubalheira das peças caçadas. Viu-lhes, num lance, os olhos a piscarem de cobiça para o corpo da gazela que lhe bamboleava aos ombros.
Fizeram-lhe alto, os outros, a três passos de distância. Mas Buala Nambuco nem pinga de medo. Rápido, parou. E, num berro sonoro, virou-se para trás a chamar: “ Ei, gente, porrinho em cima destes”- e chamou e chamou sempre a rir até que os foliões, zás-trás pernas para que vos quero! Buala- Nambuco ficou-se a dançar de tamanho gozo. E sempre assim foi, tão esperto como o coelho das hortas que papa as couves sob as pernas dos granjeiros.
Agora – que pena – Buala Nambuco já não pode andar ao cheiro da caça, ou requebrar o corpo ao som da batucada. Cobriu-se-lhe a cara de um manto de rugas e na carapinha rala já se encaracolam pontos brancos ao desafio. Só os olhos, uns olhitos vivos que luzem no negrume da pele, mostram ao povo ter ele ainda “muito esperto no cabeça”.
Na senzala, ele vive sob a chota mais chegada à riba esquerda. É uma palhota igual às outras, talvez mais acanhado o tchigilo que leva ao centro do braseiro, onde aquece, solitário a ferrugem dos seus membros. Aí pela nortada das noites frias, Buala Nambuco desafia, ao correr das horas, o ror de histórias aprendidas no curso de seus anos velhos. Mal mãe Nhirica lhe vem entregar o último naco de funge, atirado com os dedos garganta abaixo, Buala Nambuco – laripó! – dá um estalinho com a língua e arreia um muxoxo de prazer à velha amiga que lhe embala o pirão. “ Mâma Nhirica, não me dá ainda minha mutopa”- e barriga farta o riso alargando os beiços, Buala Nambuco cruza as pernas mesmo ao viés do fogaréu e assim se deixa modorrento, até sentir o soprar da ventania ao derredor. Na banza luena já o povo gastou o dia. Um a um vêm então chegando-se à cubata do velho Nambuco, que a noitada treme de frio e corta aos homens o gosto das lengalengas a pingar sob os negrumes cálidos. “Como estás, oh Buala Nambuco”;” Boa Noite mãe Nhirica” e torno aos brasidos cada um fura seu poiso, enquanto o cachimbo de água, glu-glu chiando vai de boca em boca e anda de mão em mão. Em Buala Nambuco espreita um risinho de velho sabido. Que ele já sabe ao que o povo vem. Ai sabe, sabe! Mas gosta de desentender, indagando daqui e dali, primeiro, as novas do mundo que lhe fica além da sua cubata. Por isso a conversa arrasta-se, descontínua.