sábado, 9 de julho de 2011

FÉRIAS EM SÁ DA BANDEIRA (1960)

Hoje choveu. Não calculas a satisfação que tive em olhar a chuva. É das coisas mais belas a que se pode assistir. Primeiro, a chuva a cair e, depois, aquele odor profundo que se desprende da terra. É um cheiro de vida, qualquer coisa de forte, de formidável, que os homens nunca conseguirão destruir. Enche-nos o corpo, dá-nos vitalidade, faz-nos sentir homens.

Não sei que estranho sortilégio a Terra exerce sobre mim desde pequeno. A verdade é que não me consigo ver com uma enxada nas mãos ou a dirigir uma herdade – mas eu amo a terra como se ela fizesse parte de mim próprio.

Não sei explicar, mas não posso desligar o meu futuro, a minha vida, desta terra. Mas não quero pensar, porque se começo a pensar vêm-me à ideia as dezenas de problemas que Angola atravessa. Somos 200.000 brancos, cerca de 4,5 milhões de pretos, temos a opinião mundial contra nós, a população metropolitana está contra o Governo e é o Governo que apoia o Ultramar – logo, não podemos contar com ela; aqui reina o desemprego em muito sítio, a situação económica é má, nós próprios Angolanos, não estamos unidos na maneira de pensar – que milagre nos salvará? Que milagre nos fará atravessar esta tormenta toda? Não sei é preciso não sonhar, estar atento às realidades e, sobretudo, ser implacável, inflexível, na luta que houver de travar. Não podemos ter um momento de fraqueza ou de desânimo, pois cada fraqueza, cada desânimo, pagá-la-emos bem cara.

Como queres que eu não receie ter de dormir com uma arma ao lado, como no Quénia, ter de escoltar os meus filhos à escola como na Argélia? Será isto que os homens procuram? Será isto o Mundo? Felizes os que não pensam, os que não lêem, os que não meditam! Felizes deles porque, se a hora chegar, não terão tempo sequer de saber que ela chegou! Fico a pensar que, com 20 anos, não há direito que Deus me ponha a cabeça cheia de preocupações. Que ele me perdoe, mas também tenho direito a gozar a bem aventurança dos burgueses!

Queria não pensar em tudo isto, pensar que a vida se resume a tirar um curso e singrar, casar, ter filhos… E a terra, depois? E a chuva? Poderemos nós, daqui a anos, ver cair a chuva da varanda da nossa casa? Ou estaremos então a ser escorraçados da nossa própria terra, em nome da emancipação dos povos? O mundo anda doido, de certeza! Pois vê só: para o Congo se tornar independente, os homens proclamaram solenemente o “sagrado direito à emancipação”; mas quando Katanga, quando a Hungria ou a Roménia, querem o mesmo – ah, não, aí já não há nenhum sagrado direito!... É contra a loucura deste mundo que temos que lutar – pobre destino o nosso!

Sá da Bandeira 20 de Setembro 1960