segunda-feira, 20 de junho de 2011

ALMA NEGRA (2º Prémio conto – 1958)

Tanga vermelha cingida à cintura musculosa, Nhà-Rueno atracou o “dongo” esguio na margem esquerda do Luena, cuspiu para o chão lodoso e, “azagaia” pendendo do dorso largo e forte, botou-se a palmilhar a terra nua que ia dar à “senzala”.

Vai apressado Nhà- Rueno, que nas chanas vastas do Moxico já há muito o céu engoliu a derradeira serpentina alaranjada do sol-pôr e a terra inteira se quedou adormecida, sob o manto denso das trevas. Ao longo do caminho que palmilha a passo largo, o vento assobia por entre as frinchas do mato e de “mulemba” em “mulemba” leva o soar batucada que sobados em roda, os negros tamborilam noite velha em fora.

Nhà –Rueno é tido, pelo seu povo, como o batedor mais arguto e experimentado da região, de alma forte cimentada pelo perigo que a vida de caçador oferece a quem se lhe dedica; mas à hora de breu em que caminha, vai medroso e enfiado, os olhos rebuscando as profundas do arvoredo e o punho rijo asfixiando o cabo da “catana”, porque a noite negra que tombou é boa para o preto se espreguiçar na sua esteira de palha, “mutopa” borbulhando entre dentes, e não para calcorrear sendas escusas e barrancosas.

Raio de noite – pragueja ele na sua mímica de luena, os dedos flexíveis enterrando-se na carapinha farta, como se, assim, pudesse afugentar os espíritos maus que lhe povoam o cérebro. Uma bátega, pesada e violenta despenhava-se realmente sobre o solo adormecido, milhas ao largo encharcando a terra e os homens que através dela se atreviam. Na selva barulhenta, ainda há pouco, fez-se então um silêncio repentino, enquanto o ribombar dos trovões vinha abafar a melopeia dos “quissanges” e dos “ tchingufos” das aldeolas indígenas, acordando ecos vibrantes na noite calada.

-Heuà- bufou assustado, Nhá- Rueno, quando um raio luminoso e ziguezagueante cruzou os céus num ápice e se abateu mortífero, sobre o tronco corcovado de uma velha árvore; - e deu um salto para o lado, tapando o rosto com as mãos largas, o peito hercúleo a subir e a baixar em aspirações ofegantes…

Depois, amedrontado ainda pelo clarão fugaz, mas intenso, com que topara, olhou lentamente em roda de si. Para os lados e à retaguarda só a noite escancarava o bocarrão das suas entranhas prolongadas; léguas em frente era a senzala e a companheira que o esperava, embolando o pirão com a colher de pau e cozendo ao fogo o cará. – Uf – suspirou o negro, mas quedava-se indeciso entre o abrigar-se do temporal, que regougava na sua máxima força, ou continuar a marcha através da tempestade, sujeito a rolar de um momento para o outro, por algum barranco inesperado.

- Raio de noite – tornou o negro a blasfemar. Mas, quando uma outra faísca, mais brilhante ainda do que a primeira, zebrou o ar carregado e se veio enterrar uns metros à sua frente, Nhá – Rueno começou tremer como uma criança e a castanholar com os dentes. O “Cazumbir", sabia ele, pelas lendas do seu povo, que nas noites horriveis de aguaceiro costumava levar os homens negros para os reinos infernais do fim do mundo. E Nhá-rueno, supersticioso como todo o negro, perdeu a transmontana, ignorou a fama de destemido e acobardou-se, para se atirar matorral adentro numa fuga endiabrada, o olhar preso de estranho pavor, os braços erguidos ao alto em súplica a Zambi-ia-Meia, o Deus das águas.

Aka, Mamia – rouquejou longamente, ainda ia lançado no começo do atalho que levava ao “h’rimbo”

CONTINUA AMANHÃ