Com o dorso cintilando ao fogo dos trovões, Nhá-Rueno alcançou a sua aldeia, já noite madura. Encharcado até aos ossos, abriu o “tchingilo” desengonçado da cubata, curvou-se um pouco e entrou no abrigo a chamar pala mulher.
-Eh, Caluina! Caluina, anda cá!-
No interior reinava contudo, um silêncio opressivo, cortado apenas pelo matraquear da nortada que, anharas além, não amainava um instante.
- Caluina! Eh, tu, Caluina – tornou o negro numa voz ansiosa, surpreso já com o silêncio e com a solidão que reinava na cubata.
Um gemido assustado chegou-lhe então aos ouvidos como num sopro distante. Nhá – Rueno mirou em volta, desconfiado, e os olhos abriram-se-lhe desmesuradamente, ao topar a cena crua e inesperada que o fez ficar pregado, sem pinga de sangue, no centro da palhota.
Contra o barro vermelho da parede, frouxamente iluminada pelo tremeluzir da fogueira acesa, quedava-se hirta e muda, a figura de um negro alto, para ele olhando estupidamente; na “metala”, a mulher soergueu-se, coleante, e entrou a berrar como uma possessa.
Na mente de Nhá- Rueno desenhou-se o quadro, perfeitamente compreensível da desonra vergonhosa de que fora o indefeso alvo. Um soluço repassado de amargura subiu-lhe à garganta, lentamente, e foi transformar-se num berro medonho que levantou ecos na cubata. Espavorida Caluina saltou da cama, e gritando, alcançou com rapidez a porta, escapulindo-se num fôlego lá para fora. Ao longe ainda se ouvia sua voz chorante a gemer na escuridão…
Nhá –Rueno ficou quieto, fitando o outro negro com o olhar carregado de ódio. No cérebro embrutecido, um sentimento de vingança se lhe avolumava, tempestuoso e vibrante, clamando contra a afronta que o ferira na sua honra. De um salto, pôs-se então em frente do outro, cortando-lhe a fuga que esboçara; faces contraídas num rito medonho, Nhá-rueno empunhou a catana que trazia à cinta, simulou um golpe que colocou o traidor a descoberto e vibrou-lhe no peito arfante uma cutilada funda, que lhe deixou a carne a gotejar pingos. Abraçados, os dois negros tombaram e rolaram vertiginosamente pelo solo batido da cubata; das bocas escancaradas saiam, a espaços curtos, sons abafados de raiva e dor enquanto as mãos tacteavam, trementes, os corpos suados e pegadiços, para acabarem por se aferrar, como tenazes, nas gargantas secas dos contendores.
De uma vez, a catana de Nhá-Rueno zuniu, cerce e fina, sobre a cabeça do outro. O grito lancinante que o preto deixou escapar, depois do golpe, foi logo sufocado pelo estrondo de um trovão que lá fora rebentava.
-Negro ordinário – berrou-lhe Nhá-Rueno desvairado, espadeirando com a arma sobre o rival. E continuou. Continuou até sentir que o sangue viscoso do outro já brotava, em golfadas espessas, dos sulcos abertos na carne e lhe borrifava por toda a parte o corpo cansado. Lentamente, no derradeiro estertor o outro começou a afrouxar o abraço que o unia a Nhá-Rueno e acabou por descair para o lado, ficando de borco, os olhos raiados de vermelho, as mãos tentando arrancar, no derradeiro estertor da agonia, a catana que se enterrara, até ao cabo, no lado esquerdo do peito.