domingo, 16 de setembro de 2012

MALMEQUER



Ali,
no imenso lodaçal do pântano,
boiavam algumas folhas já podres.
Ao redor
tudo era deserto e imensidão
isolamento e desespero
como se a Natureza
houvesse negado um pouco de luz e vida
às águas pestilentas e traiçoeiras.
O capim crescera incólume,
 as árvores,
cobertas de uma coroa carcomida pelos vermes,
pendiam inertes,
e a água negra,
negra como a noite infernal,
exalava um cheiro fétido e pavoroso.
O ar pesado,
carregado de nuvens cinzentas,
ensombrava o horizonte,
onde volteava o corpo preto e agoirento de um corvo.
Era a floresta desconhecida,
onde reina o mistério,
a lei do mais forte,
o silêncio impressionante e opressivo,
onde a morte espreita a cada passo,
no pântano imenso e zombeteiro.
De longe o chacal rompe a noite com um uivo agoirento e assassino,
que se repercute pela imensidão insondável da selva
num gemido triste e arrepiante.
De resto…mais nada.

Só o luar se reflecte nas águas escurecidas,
nas longas noites de Outono,
tirando cintilações estranhas e grotescas do lodo espesso,
onde vive o corpo esguio e flamejante de um peixe ignorado.
Ali era o pântano,
fiel servidor da morte,
armadilha caprichosa,
donde   ninguém  jamais saiu.
E foi ali,
naquele amontoado confuso de podridão e imundice,
que nasceu o pobre malmequer,
simples e modesto,
solitário sonhador das noites tropicais.
Foi, naquele pântano de morte que ele abriu as suas pétalas,
sorridente e enamorado,
ao sol quente de uma manhã amena.
Era um singelo malmequer de outono,
desse outono  tristonho e sério
que traz à alma uma doce aguarela de nostalgia e lassidão.
Foi num Outono assim,
que eu conheci  aquele pobre malmequer.
Foi num Outono…..

Dos ramos desnudados já,
caiam lentamente as folhas amarelecidas tombando no chão,
inertes,
sem vida,
desaparecendo ao longe na poeira do infinito,
E o malmequer era o meu companheiro sério
das horas de tristeza e amargura,
quando a saudade canta baixinho ao coração,
e penetra em silêncio,
de mansinho,
pelas frestas de uma janela partida.
E ele sorria sempre,
escutando a arenga palratória de uns discursos inflamados,
 que eu ensaiava contra a brancura da parede.
E as tardes passavam-se,
com a água a murmurar baladas dolentes,
escorrendo lá pelas rochas encobertas,
com poentes tintos de sangue.
E os dias iam passando,
rasgavam-se tristemente as folhas do calendário,
e o outono dizia adeus ao malmequer.
Vieram as chuvas,
as torrentes assolapadas,
o frio cortante em vergastadas de chicote impiedoso. 
E o pobre  malmequer  ia-se definhando aos poucos.
Murchavam as suas pétalas de doçura,
o seu vulto apagado derreava-se em convulsões quebradas.
Mas era lindo o malmequer!
No seu seio,
albergava o sentimento da pureza e castidade.
E foi por isso que eu gostei dele:
porque era modesto e sem vaidade,
com um coração de oiro,
repleto de honestidade e carácter.
Ouvia-se ao longe,
o mugir das ovelhas,
o velho pastor centenário tocando a sua flauta,
e, na torre da capelinha do Monte
batiam compassadamente as seis Avé- Marias.
Curvada a cabeça para o peito,
cheio de fé num alguém mais poderoso,
o solitário malmequer fechava as pétalas e murmurava docemente: até amanhã…..
Morreu o outono!
Na última tarde fui ao pântano.
Encontrei o malmequer amigo já morto.
Não pudera dizer-me o derradeiro adeus de amizade,
o meu triste companheiro.
Fitei-o  compungido a alma esfarrapada em tiras de dor,
que me queimavam o peito.
E curvei-me em respeito,
para recolher com gratidão
 a derradeira homenagem que ele me pudera deixar:
as suas pétalas brancas, já sem seiva!
Lá longe o sol escondia-se por entre as serranias da aldeia.
E eu,
com uma lágrima rebelde de saudade a escorrer pelos olhos
 ia abandonando as suas folhas pelo chão pedregoso,
enquanto murmurava numa oração amargurada de tristeza: MALMEQUER…BEMEQUER…MALMEQUER…BEMEQUER…

Este, quase poema, foi o 1º conto escrito pelo Henrique. Tinha 15 anos. O seu espírito solidário, a necessidade absoluta de estar presente, de ouvir os outros quando há sofrimento, é bem patente na inocência total das palavras aqui expressas. Para nós família, o seu exemplo de vida, é a herança que nos permite viver com esperança.
Recordo um pensamento do Padre Vasco Pinto de Magalhães, publicado no seu livro «Onde há crise há esperança», e que passo a citar: “Porque somos, tantas vezes, pássaros feridos e perdidos, prontos a ferir e a perder, é preciso um denunciar que seja prelúdio de um anuncio. Pois o mesmo dedo que se põe na ferida deve apontar o caminho da cura”




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