terça-feira, 18 de setembro de 2012

O CARNAVAL DO BONIFRATE


Foi em Março de 1957, tinha o Henrique 16 anos, que o jornal “A Huila” (Lubango Angola) publicou este espantoso texto, meio conto, meio poema, que revela a alma de um muito jovem adolescente, solidário, preocupado com os problemas sociais e a dor dos seus concidadãos. Como o conheci desde sempre, posso garantir: foi com o mesmo sentimento, o mesmo modo de observar o mundo, que embarcou na  última aventura da sua vida:  ser o Ombudsman, o defensor do povo, o ouvidor, o Provedor de Justiça

No Circo há serpentinas e barracas,
gargalhadas e alegria…
E soam tambores em atoarda de aleluia,
chiam vozes de escarninho e mal dizer.
 Bate o jaze desenfreado.
Pernas ao leu, atiradas ao Deus dará.
Vestes garridas sem pregas nem decência,
balões, papeis e foguetes luminosos
numa amalgama confusa de rostos sem expressão.
 E de passo a passo há gritos e risadas,
encontrões e blasfémias repentinas,
no deambular noctívago de quem passa e mira,
alheio à luz feérica que deslumbra.

São sonhos e são caminhos,
e há visões de zombaria, engalanadas de luxo e fausto.
 E são veredas e miragens, tentações gritantes, sem pudor.
 Túneis escondidos, onde mora a miséria envergonhada
 de quem  quer comer e não tem pão para se enganar…

E ao ar livre,
a contrastar com a negrura de uma vida,
o palhaço tem a face besuntada de cremes e  tintas de aguarela.
Os olhos acanhadiços do folgazão
escondem-se por entre o emplastro desigual do colorido.
Desarticulado boneco de palha que a faúlha não consegue incendiar,
cabriola parvamente num dever que é seu mister;
nariz vermelho,
casaco esfarrapado e calças pardas,
boca escancarada em gorjeio de idiota,
olha a multidão que por ele passa,
indiferente ao seu fadário.

Mas no olhar triste e profundo do palhaço,
anónimo histrião que o mundo vê mas não conhece,
há a doçura sem par de uma alma casta que não sabe o que é pecado!
Tiritando na frieza da noite, que é o seu dia,
arranca a patetice da chacota,
bandeira da heresia popular,
que já não sabe se ri do palhaço,
se da pantominice enganadora
que se esconde no rictus   amargo da boca pintada.
E  buzinam toques em estampidos de arrepiar.
Cruzam-se morteiros e rebentam bombas e petardos,
num louco carrossel de luxúria onde cavalga a cigarrilha do prazer.
Mas o saltimbanco  canta e dança nesse jeito de fantoche
que entrechoca os dentes em castanhola  alvar,
enquanto no ser do bonifrate há pavor e há tortura porque,
lá dentro, na cama de palha, o filho,
fruto de uma união que não resultou,
estrebucha entre babas de agonia.

Mas o publico,
indiferente espectador, que a desgraça alheia goza,
bate palmas de alegria
 e, rindo do momo enfarruscado,
só quer esquecer a própria dor para a embriagar nas piruetas do arlequim,
que lhe ri na cara a estupidez lastimosa da sua vida.
E ninguém entende o choro sentido do palhaço,
que a rir, chora, e a chorar ri,
e salta e pula e cai para divertir os outros
em chiste galhofeiro, que crime é troçar da morte e de  Deus,
do Mundo e da criança que agoniza.
E o jaze arranca das entranhas o carnaval maluco e desumano,
que me faz lembrar que todo o mundo é palhaço na dolência do destino,
e que também eu fui palhaço e bobo truão e burlão no carnaval da minha vida.!
E as serpentinas e os «confetis» já não são papeis bizarros de brincadeiras,
mas correntes de ferro que se impõem,
espezinham, dominam, exigem
e não o deixam fugir para salvar o filho moribundo; 
e os nervos doem  causam-lhe agonias e suores,
enquanto o corpo arrasta a nódoa que o chumba no anfiteatro de terra,
onde caiem as primeiras moedas de um público
que sai divertido e já não olha para o palhaço que esqueceu.

Amanhece! 
No circo jaz da noite de farra o esterco colorido do carnaval….
E sobre o leito mortuário do miúdo,
há alguém que ainda ri,
porque já não é palhaço mas louco que não tem razão.  
E a gargalhar,
ele pousa sobre a campa do seu filho,
em vez de flores brancas de saudade – as moedas que o público lhe atirou!!

Publicado no Jornal «A Huila» em 9 Março  de 1957