segunda-feira, 16 de maio de 2011

CAMEIA (1)

No dia 6 de Junho de 1958, o “Diário Popular” publica uma reportagem, feita pelo nosso pai (então com 17 anos), sobre uma caçada na Cameia, em Angola.

Quatro horas da manhã nos longes da CameiaÀ luz difusa da madrugada, os vultos embuçados dos caçadores vão-se chegando ao calor da fogueira e em redor dela se agacham, com as mãos espalmadas sobre as labaredas. Uns, pernas então cruzadas à moda dos negros, quedam-se a fitar demoradamente o chispar do lume crepitante; outros mais afoitos, arriscam as primeiras impressões sobre o tempo e sobre os bichos, enquanto atulham de tabaco os pipos dos cachimbos e se fica a ouvir, no silêncio pesadão da noite, o borbulhar do café, aquecendo, e o chiar dos ovos que estrelam na frigideira de boca larga. Minuto a minuto. a anhara acorda do sono em que mergulhou horas atrás. É, ao princípio o desbobinar de um ténue rolo esbranquiçado, que a pouco e pouco marinha céu acima; depois, o pardo das trevas irá dando lugar, certamente, a uma miscelânea de cores e de sons, mas, antes que o dia seja nascido já nós esquadrinharemos os recantos à planície, em busca de caça, de que se não tem notícia sobre o poiso certo. Com efeito, o roncar agudo do motor de uma carrinha veio confirmar as nossas suposições. Dois faróis penetrantes encharcaram de luz a área do acampamento, e da fogueira os homens ergueram-se e abalaram, apressadamente, em direcção às barracas onde pernoitamos. “Ala ala que o tempo urge”; e, em corrida, embuchando ainda o último pedaço de “mata-bicho”, eis-nos pulando para os veículos respectivos, com as armas a tiracolo e os típicos capacetes coloniais enterrados na cabeça. Depois, os pneus rolam que rolam sobre o cascalho e a distância infinda desdobra-se, silenciosa e erma à nossa frente. Começou a caçada nas grandes chanas da Cameia!

De pé em cima do estrado da “carrosserie”, vamos agora calados e pensativos. O frio gélido que vem da Nascente obriga-nos a subir as golas dos agasalhos e a esfregar as mãos uma na outra. Na noite calada, a Cameia assemelha-se a um enorme mar de terra, onde as ondas são o capinzal amarelo dobrando-se, dócil, à passagem inexorável dos pneumáticos. Milhas e milhas a perder de vista, só a imensidão do solo negreja no fundo pardacento e as trevas se prolongam para lá dos confins do mundo. Nem uma só palavra arriscamos na escuridão. Afora o golpear da areia, batendo de encontro aos guarda – lamas, apenas o martelar dos motores nos vem ferir os tímpanos e brigar com os nervos. O resto é silêncio – silêncio e quietude a darem-se as mãos e a cobrirem de assustadora monotonia a paisagem triste e solitária da Cameia. Mal conseguimos divisar os rostos dos nossos companheiros. Vão mudos e embuçados, que o frio dos trópicos também retalha as carnes. Só lhes conseguimos distinguir os olhos que seguem, desmesuradamente abertos, o tremeluzir dos farolins, a riscar nos caminhos da chana novos caminhos. Em linha, uns atrás dos outros estão marchando os carros da caravana. Para nós, que desconhecemos os cantos à planície, é incompreensível o sentido de orientação que guia os motoristas e os leva a empurrar até ao fundo os aceleradores, numa cadência nervosa que não esmorece. E quilómetros galgam quilómetros nesta corrida que parece não ter tino nem destino! No crepúsculo indeciso que ganha a estepe, vamos topando, de quando em vez, com dois olhos coruscantes, pestanejando por entre o capim. Ansiosos, debruçamo-nos, então, do gradeamento dos carros, com um estranho formigueiro de sensações a subir-nos pernas acima… Mas logo os mais experientes caçadores, sorrindo à socapa da nossa ingenuidade, nos desvanecem as dúvidas: os “olhos terríveis”, que apontamos quase a medo, são de inofensivas aves nocturnas acaçapadas no chão!

Continua…