No dia 6 de Junho de 1958, o “Diário Popular” publica uma reportagem, feita pelo nosso pai (então com 17 anos), sobre uma caçada na Cameia, em Angola.
Quatro horas da manhã nos longes da Cameia… À luz difusa da madrugada, os vultos embuçados dos caçadores vão-se chegando ao calor da fogueira e em redor dela se agacham, com as mãos espalmadas sobre as labaredas. Uns, pernas então cruzadas à moda dos negros, quedam-se a fitar demoradamente o chispar do lume crepitante; outros mais afoitos, arriscam as primeiras impressões sobre o tempo e sobre os bichos, enquanto atulham de tabaco os pipos dos cachimbos e se fica a ouvir, no silêncio pesadão da noite, o borbulhar do café, aquecendo, e o chiar dos ovos que estrelam na frigideira de boca larga. Minuto a minuto. a anhara acorda do sono em que mergulhou horas atrás. É, ao princípio o desbobinar de um ténue rolo esbranquiçado, que a pouco e pouco marinha céu acima; depois, o pardo das trevas irá dando lugar, certamente, a uma miscelânea de cores e de sons, mas, antes que o dia seja nascido já nós esquadrinharemos os recantos à planície, em busca de caça, de que se não tem notícia sobre o poiso certo. Com efeito, o roncar agudo do motor de uma carrinha veio confirmar as nossas suposições. Dois faróis penetrantes encharcaram de luz a área do acampamento, e da fogueira os homens ergueram-se e abalaram, apressadamente, em direcção às barracas onde pernoitamos. “Ala ala que o tempo urge”; e, em corrida, embuchando ainda o último pedaço de “mata-bicho”, eis-nos pulando para os veículos respectivos, com as armas a tiracolo e os típicos capacetes coloniais enterrados na cabeça. Depois, os pneus rolam que rolam sobre o cascalho e a distância infinda desdobra-se, silenciosa e erma à nossa frente. Começou a caçada nas grandes chanas da Cameia!
De pé em cima do estrado da “carrosserie”, vamos agora calados e pensativos. O frio gélido que vem da Nascente obriga-nos a subir as golas dos agasalhos e a esfregar as mãos uma na outra. Na noite calada, a Cameia assemelha-se a um enorme mar de terra, onde as ondas são o capinzal amarelo dobrando-se, dócil, à passagem inexorável dos pneumáticos. Milhas e milhas a perder de vista, só a imensidão do solo negreja no fundo pardacento e as trevas se prolongam para lá dos confins do mundo. Nem uma só palavra arriscamos na escuridão. Afora o golpear da areia, batendo de encontro aos guarda – lamas, apenas o martelar dos motores nos vem ferir os tímpanos e brigar com os nervos. O resto é silêncio – silêncio e quietude a darem-se as mãos e a cobrirem de assustadora monotonia a paisagem triste e solitária da Cameia. Mal conseguimos divisar os rostos dos nossos companheiros. Vão mudos e embuçados, que o frio dos trópicos também retalha as carnes. Só lhes conseguimos distinguir os olhos que seguem, desmesuradamente abertos, o tremeluzir dos farolins, a riscar nos caminhos da chana novos caminhos. Em linha, uns atrás dos outros estão marchando os carros da caravana. Para nós, que desconhecemos os cantos à planície, é incompreensível o sentido de orientação que guia os motoristas e os leva a empurrar até ao fundo os aceleradores, numa cadência nervosa que não esmorece. E quilómetros galgam quilómetros nesta corrida que parece não ter tino nem destino! No crepúsculo indeciso que ganha a estepe, vamos topando, de quando em vez, com dois olhos coruscantes, pestanejando por entre o capim. Ansiosos, debruçamo-nos, então, do gradeamento dos carros, com um estranho formigueiro de sensações a subir-nos pernas acima… Mas logo os mais experientes caçadores, sorrindo à socapa da nossa ingenuidade, nos desvanecem as dúvidas: os “olhos terríveis”, que apontamos quase a medo, são de inofensivas aves nocturnas acaçapadas no chão!
Continua…