segunda-feira, 23 de maio de 2011

CAMEIA (5)

Já sobe, na ribalta da estepe, o pano da última cena de caçada. Na orla oposta de uma baixa com que topámos, uma vaga de fogo brotou do capinzal, rolou em golfadas sucessivas e elevou-se para o ar, confundindo-se com o vermelho afogueado de que nessa hora o céu se vestiu.

Implacável, a queimada progride dentro das faixas abertas pelos batedores negros, cobrindo a estepe de chamas bailarinas, enquanto o solo ruge e vocifera, ferido no bojo pelo, lamber do lume. É a hora do poente na Cameia. Novelos de tons irisados engalfinham-se

uns nos outros e uma fumaça espessa se desprende da terra e macula o inferno, que é o horizonte ao entardecer. Até nós, trazido pelo vento, que sopra forte, veio um rumor semelhante a trovoada: é o chocar, contra o solo, de milhares de cascos de animais que, espavoridos, fogem à frente do fogo. E passam, agora, junto a nós as mais diversas espécies da fauna da Cameia.

Á frente, surgiu, ainda hesitante, o focinho de um “nunce”, logo seguido pelo corpo saltitante de uma cabra do mato, atrás de si arrastando centenas de companheiras assustadas. Em galope trepidante, debandam para os espaços secos do resto da chana.

E a queimada atinge o auge! O covão arde de lés a lés, dentro das marcas que os batedores riscaram no solo e o ar enche-se, como por encanto, de mil e um ruídos: a terra que chia, calcinada, a queimada que gargalha na sua marcha voraz e o tropel retumbante dos animais em fuga, ao que se junta o estalar dos arbustos, pisados pelos bichos, e as exclamações de admiração, soltadas pelos caçadores. Uma hiena pintalgada, de faces arreganhadas num riso asqueroso, abatemo-la nós, quando tentava escapar-se para longe. E passam, de novo, os galengues, alguns com o pelo já levemente chamuscado pelo lume que tudo arrasa… Deixamo-los partir, que de sangue inútil já estamos fartos…

Entretanto, a queimada vai morrendo, à medida em que as chamas diminuem de intensidade e frequência. Para as bandas do poente, o sol mergulhou já no seu sono costumeiro e, na Cameia, de novo vêem abater-se o silêncio e as trevas indefinidamente longas das noites de Angola…

À luz dos farolins, fazemos o balanço da caçada que terminou. E, metidos dentro das “carrosseries” os corpos dos animais de carne aproveitável, vamos de novo anhara adentro, rumo às tendas do acampamento, que deixáramos ao romper da alva.

No céu, brilham estrelas e luzem pirilampos. Do capim da chana eleva-se o coro estridente das cigarras acompanhando de longe o soar dos tambores dos negros, que, nos sobados dos povos quiocos, anuncia o começo do batuque. Pensativos, fumamos em silêncio, e, calados, escutamos, ao mesmo tempo, a sinfonia que anhara executa na hora que decorre…

Se saudade é o que se sente ao abandonar o que se ama, saudade é certamente o que sentimos ao deixar para trás os longes incomensuráveis da grande anhara em repouso. Adeus Cameia! Até à volta!

Fim!