segunda-feira, 5 de novembro de 2012

ERA UMA VEZ


Em Fevereiro de 2003, a revista “Pessoal” (Associação Portuguesa de Gestores e Técnicos dos Recursos Humanos), publica uma entrevista com o Provedor de Justiça, revisitando, de um modo intimista, todo o seu percurso de vida, pessoal, profissional e até familiar. Começa assim:
Em finais dos anos 50, um jovem chega a Lisboa. Chama-se Henrique e vem de Angola. Viaja de barco, Atlântico acima, para estudar Direito. A então chamada metrópole não lhe causa boa impressão. Mas haveria de habituar-se… Mais de quatro décadas depois, é dele a principal cadeira da Provedoria de Justiça”. 
E continua:
“Henrique Alberto Freitas do Nascimento Rodrigues: filho único de pai funcionário administrativo e de mãe doméstica, nasce nos Luchazes, Angola, a 3 de Agosto de 1940. É aí que permanece até aos seis anos, sem luz eléctrica nem água canalizada, rodeado pela imensidão do espaço africano.
Henrique passa, por isso, os seus tempos de rapaz a gozar de grande liberdade e sentido de independência. Os únicos brancos das redondezas eram, sem contar com os seu pais, um casal de comerciantes. Ainda hoje faz questão de salientar…”
“ Eu era a única criança branca. Convivi durante vários anos apenas com crianças pretas, o que marcou muito a minha maneira de ser”. E acrescenta, convicto: “não sou anti-racista por motivos de racionalidade, mas sou anti-racista por motivos de sentimento”. Assim se explica a forte ligação à terra natal… “ A minha juventude foi muito marcada por África. Acho que isso, ainda hoje, se reflecte na minha personalidade, na medida em que é comum aos angolanos uma grande noção de espaço, no sentido de liberdade, de independência. Cada um tem de tratar de si próprio”. Acresce ainda o sentimento de solidariedade humana, de abertura de espírito, que se verificava na altura “e que na Europa, pura e simplesmente não existe”, bem como o espírito de iniciativa. “ Em África, ninguém espera nada do Estado, apenas de si próprio; é o contrário do que acontece em Portugal, e por extensão, no resto da Europa”.
“É no Luso que o jovem Henrique faz os estudos primários e os dois primeiros anos do liceu. O restante período foi terminado em Sá da Bandeira, actual Lubango, por força da transferência do pai.

Aos 17 anos, vê-se novamente forçado a mudar. No entanto, desta vez, a mudança implicava uma viagem bem longa. Duraria duas semanas… À semelhança do que se passava com muitos jovens das chamadas províncias ultramarinas, Henrique atravessa o oceano de barco em direcção à metrópole, na companhia dos pais. Paragens, só nas Canárias e na Madeira, onde ainda era comum ver crianças saltarem do cais, na tentativa de apanhar alguma moeda atirada ao mar pelos visitantes mais abastados. À chegada a Portugal, o choque foi grande. Não gostou. “As primeiras impressões foram péssimas”. Para trás, tinham ficado o clima quente e luminoso, as pessoas de espírito aberto e solidário. Henrique pondera duas hipóteses: Coimbra e Lisboa. No entanto, o rigor e a disciplina impostos pela praxe de Coimbra, que em tudo contrastava com o seu espírito aberto, tornam fácil a decisão. Entra na Faculdade de Direito, afinal de contas a sua paixão. “ Era a minha orientação. No antigo Curso Comercial,  tinha sempre péssimas notas nas ciências, em Matemática, em Química… Mas tinha notas brilhantes na parte humanitária, em Filosofia, em História… Foi, portanto, a única opção”. Henrique faz parte do Grupo de Estudantes Ultramarinos. Conhece outros estudantes de Angola e Moçambique, mas não se envolve sobremaneira com os movimentos estudantis da época. Viria a licenciar-se em 1964. O curso, não hesita em reconhecer, sustenta-o em termos de raciocínio até aos dias de hoje”.” Direito era um curso que nos proporcionava uma grande racionalidade, uma grande lógica de pensamento”.

Lisboa, Fevereiro de 2003, In “Pessoal”, revista da Associação Portuguesa de Gestores e Técnicos dos Recursos Humanos.