Faltam apenas 3 horas para morrer este ano celebérrimo de 1958. Numa visão retrospectiva do que passou, ele foi o ano que mais profundamente influenciou a minha vida de rapaz.
Mas 58 foi mais do que os outros anos e só uma dúvida cruel me assalta o espírito neste momento e me faz ter medo de responder: foi bom ou mau?
Eu deixei a minha terra, os meus amigos, o meu lar, um milhão de pequenos nadas que sempre encheram a minha vida.
E eu tinha um amor profundo por tudo isso que era parte de mim mesmo e hoje deixou de existir.Era um sonho a minha vida em Angola, os “problemas” que me desgostavam ora em ora, as ilusões que permanentemente – numa constância tão viva como a corrente de um rio – me enchiam a alma. Eu sonhava! Sonhava coisas belas, muitas delas concretizadas.
Vivia afinal, - e só quando deixamos de ter uma coisa é que lhe apreciamos o valor! - um grande sonho dentro de um grande balão, que não era só feito por mim, era ajudado a encher-se pela própria vida objectiva que lá vivi.
O meu balão se esvaiu quase todo, desde que, num dia, eu deixei a minha terra. Quase que o sabia quando, do convés do “Uíge”, eu não senti saudade, nem tristeza, nem choro, nem nada: senti só um vazio infinito – bem me lembro – uma apatia enorme, gigantesca, que me invadiu completamente e não me fez chorar nem rir, antes me prendeu estonteado com mudança tão radical. Foi essa apatia, essa tristeza que não me fazia sentir triste mas somente alheio, que se prolongou por muitos meses ainda.
Eu vivi, sim; mas eu não vivi interiormente, uma vida só minha, como sempre tinha vivido.
Eu sofri imenso com a brusca transição a que me vi sujeito e confesso-o lealmente, eu não quis reagir contra esta apatia que me invadiu.
Em virtude de tão abismável apatia da minha parte, eu não abri um único livro de estudo – eu fui inconsciente, pela 1ª vez na minha vida!!! Não me interessei pelos estudos, um pouco levado pela ideia (bem idiota) de que seria capaz de passar com uma simples vista de olhos sobre a matéria.
Verdadeiramente, eu só comecei a estudar no início do 3º período e, mesmo durante ele, muitas horas eu perdi.
Não tive – reconheço-o – a “paga” que merecia por esse hediondo “crime” que cometi pela 1º vez na minha vida: eu passei a 3 cadeiras, (e ainda por cima com média de 11 ), como qualquer aluno normal que tivesse estudado um poucochinho.
Para ser verdadeiro, ainda hoje estou para saber como consegui passar a essas três cadeiras.
Eu não sei como passei. Juro que não, porque eu sei que merecia ter chumbado a Português, a Constitucional e talvez até a Romano. Mas eu tive uma sorte medonha nas provas orais. Diga-se também que, especialmente em Romano e Constitucional, eu não fui amedrontado para as orais. Pelo contrário!
Fui, para dar tudo por tudo, embora objectivamente, eu estivesse quase já reprovado pelas notas da escrita.
Mas.. passei. Passei e justamente, porque as provas que eu prestei nas orais foram suficientemente convincentes.
Quem me visse então, poderia ser levado automaticamente a supor que eu sabia – quando afinal, tive tanta sorte que só me calhou aquilo que eu tinha estudado e outras coisas que não tinha estudado, mas às quais não sei como consegui responder bem.
Lisboa 31 de Dezembro 1958